segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Justiça Administrativa: “Génese e Actualidade dos Modelos Francês e Anglo-saxónico”

Falar sobre a evolução histórica dos modelos francês e anglo-saxónico de Justiça Administrativa é uma tarefa deveras difícil pois apesar de serem modelos distintos, com nascimentos e devir completamente opostos, a sua essência na actualidade é comum e visa sobretudo a protecção dos Administrados.

O modelo francês de Justiça Administrativa teve a sua génese com a Revolução Francesa, tendo como base a jurisprudência do Conseil d’ État e percorreu um longo caminho até aos nossos dias. O Professor Vasco Pereira da Silva distingue três momentos distintos:
1 – A fase do “pecado original” que corresponde ao período do seu nascimento, caracteriza-se, essencialmente, pela promiscuidade entre as tarefas de administrar e julgar, dado que a “Justiça Administrativa nasceu dentro da Administração”.
No seio de um Estado Liberal e na sequência do pensamento de Montesquieu foi com base no princípio da separação de poderes que a Justiça Administrativa foi inserida na própria Administração, isto é, “existem em qualquer Estado três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito público e o poder executivo das coisas que dependem do direito civil”. Na óptica deste autor os tribunais julgavam os diferendos dos particulares, logo a resolução dos litígios da administração não lhes caberia. Na realidade, a Justiça Administrativa tinha como fim principal proteger a própria Administração.
2 – A fase do “baptismo”, ou da plena jurisdição do contencioso administrativo, cujo modelo está associado ao aparecimento do modelo do Estado Social. Aos poucos, a Justiça Administrativa como ente próprio começa a despontar e vai-se progressivamente autonomizando do poder administrativo.
3 – A fase do “crisma” ou da “confirmação”, que se caracteriza pela reafirmação da natureza jurisdicional do contencioso administrativo, acompanhada pela acentuação da respectiva dimensão subjectiva, destinada à protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares.

A afirmação desta dupla dimensão – jurisdicional e efectiva, do Contencioso Administrativo é realizada, primeiro ao nível do Direito Constitucional, tendo como fontes o legislador constituinte (no caso da Alemanha, Espanha e Portugal) ou a jurisprudência (França, Itália e Inglaterra), e está, de igual modo, acompanhada pela doutrina, o que irá originar um conjunto progressivo de reformas legislativas ao nível dos vários países europeus e que terá com consequência, uma “nova” Justiça Administrativa, tendencialmente convergente, mesmo em países de modelos de Contencioso Administrativo distintos.

Nos países seguidores do modelo anglo-saxónico, o direito regulador da Administração era o direito comum, estando as garantias das particulares conferidas aos tribunais comuns, que teriam amplos poderes de injunção face à Administração, que lhes estaria subordinada, da mesma forma que a generalidade dos cidadãos. Dicey considerava que nos países de direito comum, a Administração Pública configurar-se-ia, do ponto de vista jurídico, como um sujeito não distinto de um sujeito privado e, consequentemente titular dos mesmos direitos, poderes e capacidades jurídicas.

Este modelo, apesar de parecer perfeito, tinha alguns problemas pois o juiz auto limita a sua apreciação no domínio do poder discricionário e tende a predominar um entendimento da discricionariedade de que torna menos efectivo o controlo judicial. Apesar da jurisdição única existem regras processuais diferentes para os litígios administrativos, pelo que o controlo da maior parte das decisões administrativa não seria possível através dos meios processuais genéricos, mas através de meios específicos nem sempre accionados pelos particulares ou seja estes meios não eram utilizados contra a Coroa, enquanto tal, o que tornava muito difícil o controlo da actuação dos órgãos administrativos superiores, em especial do Governo.

No entanto, com o advento do Estado Social a situação foi-se alterando. A existência de um Estado Prestador vai influenciar severamente o Direito Administrativo e consequentemente, os modelos de Justiça Administrativa. Na verdade, nada será com antes…

O “aprofundamento da noção de Estado de Direito”, que está associada ao Estado Social obriga a que os litígios entre a Administração e os particulares sejam julgados pelos tribunais. E se essa passa a ser uma prerrogativa dos países sob influência do modelo francês, sempre foi a forma de estar nos países da common law, onde vigora o modelo anglo-saxónico.

Se nos primeiros, produto da sua “infância difícil”, julgar começou por ser ainda administrar; nos segundos, sob um diferente contexto jurídico julgar a administração foi sempre julgar, mas um julgar que não estava isento de problemas pois não atendia às especificidades da Administração e aos problemas que afectavam os seus administrados. De facto, a criação de inúmeras autoridades públicas independentes, que caracterizou o desenvolvimento do Direito Administrativo britânico durante o período do Estado Social, originou alguma “confusão” entre administrar e julgar, traduzida na consideração do controlo efectuado como um sucedâneo da fiscalização judicial das actuações da Administração.

Assim, ao longo do século XX, nos países onde vigora o modelo da common law o Direito Administrativo foi ganhando forma e sendo implementado, o que correspondeu ao estabelecimento de regras administrativas destinadas à prossecução das “politicas públicas” exigidas pelo Estado Prestador. Deu-se, igualmente, a criação de órgãos administrativos especiais destinados tanto a exercer a função administrativa como a fiscalizar a Administração e surgiram regras próprias de controlo judicial da Administração.

Com a evolução histórica que acompanha a instauração e o desenvolvimento do Estado Social verifica-se uma primeira aproximação entre estes dois modelos. No sistema francês deu-se a transformação de “órgãos administrativos especiais” em verdadeiros tribunais. Por seu lado, no modelo anglo-saxónico assistimos à criação de entidades administrativas especiais encarregadas de fiscalizar a Administração, ainda que a última palavra caiba aos Tribunais.

Com efeito, em ambos os modelos temos tribunais autónomos e independentes a controlar a Administração: tribunais especiais que dão origem a uma jurisdição autónoma, no sistema francês, e tribunais comuns nos sistema britânico.

Para que estas alterações sucedem-se foi muito importante a europeização da Administração Pública, que cria uma necessidade de aproximação entre os diversos sistemas jurídicos europeus, no que concerne à organização do sistema de garantias dos particulares, principalmente quanto à compatibilização das garantias administrativas com as judiciais.

Hoje, num contexto de Estado Pós-Social, julgar a Administração é verdadeiramente julgar. A actividade administrativa está subordinada ao direito e atribui aos tribunais a competência para conhecer todos os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas interpessoais.

A ideia que vigora em ambos os modelos, influenciada pelo Direito Administrativo Europeu é a da protecção judicial plena efectiva. E se por um lado, existe a opção vincada de existirem tribunais especializados em razão da matéria, por outro os tribunais comuns analisam-na e julgam.

E numa altura em que o Estado Social está em crise, é cada vez mais importante que as garantias dos Administrados estejam asseguradas por órgãos jurisdicionais independentes e livres de agir, cujo fito seja protegê-los e não administrar.

Ana Luísa Ribeiro
Aluna nº 17683

Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas – Curso de Direito Administrativo. Vol. I, Coimbra: Almedina, 2007.
ANDRADE, José Carlos Vieira de – A Justiça Administrativa (Lições). 8ª Edição. Coimbra: Almedina, 2006.
SILVA, Vasco Pereira da – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. 2ª Edição. Coimbra: Almedina, 2008.

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