quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo

Processo:0140/09
Data do Acordão:16-12-2009
Tribunal: 2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator: FERNANDA XAVIER
Descritores: ACTO ADMINISTRATIVO

LEGITIMIDADE
ACTO LESIVO

Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:I- RELATÓRIOA…, com os sinais dos autos, veio interpor recurso de revista excepcional, ao abrigo do artº 150º do CPTA, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido a fls. 574 e segs., que negou provimento ao recurso jurisdicional interposto do despacho saneador do Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco que, por sua vez, julgara procedente a excepção de inimpugnabilidade do despacho da Senhora Ministra da Justiça, de 30 de Março de 2004, publicado no DR II Série, de 20.04.2004, que autorizou e homologou a abertura de concurso para atribuição de licenças de cartório notarial e, em consequência, absolvera a Ré e os contra-interessados da instância. Termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:1. O presente recurso cumpre os requisitos previstos no artigo 150º do CPTA.2. Se há matéria com verdadeira repercussão jurídica e social e que deve ter uma aplicação verdadeiramente aprimorada, essa matéria é que compensa os administrados pela proibição de autotutela, através da concessão de meios jurisdicionais adequados à salvaguarda dos direitos que se arrogam.3. No presente caso, a recorrente alegou que o concurso cujo aviso se visou impugnar não correspondia a um acto administrativo de mera execução, mas a um acto administrativo de execução de um comando legislativo, este sim tido como portador de inconstitucionalidades e de ilegalidades.4. Nesse circunstancialismo e considerando que: a) a CRP não atribui aos particulares legitimidade para, em abstracto, intentar acção de declaração de inconstitucionalidade de actos legislativos, natureza que este Supremo Tribunal reconheceu em acórdão de 07.06.2006, proferido no processo 1257/05-20; b) a lei portuguesa não prevê a figura do recurso de amparo constitucional; c) do ponto de vista do administrado, não é possível impugnar directamente um verdadeiro acto legislativo; a única forma de poder atacar o conteúdo do acto legislativo inconstitucional passa por impugnar os actos administrativos primários de execução daquele (actos distintos dos actos administrativos de mera execução de comando administrativo anterior, distinção que nem em 1ª, nem em 2ª instância foi feita!).5. Ao decidir-se, como no aresto impugnado, praticou o acórdão do TCA Sul um acto de verdadeira denegação de justiça, com violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, pelo que se o recurso de revista é hoje uma “verdadeira válvula de segurança do sistema”, deve reconhecer-se que não existirá sistema de administração de justiça mais inseguro do que aquele que, num processo de entropia negativa, veda o acesso aos seus destinatários, razão pela qual a questão em causa cumpre o primeiro requisito do artº 150º do CPTA.6. Por outro lado, havendo duas orientações divergentes nas decisões dos Tribunais Centrais Administrativos Norte e Sul sobre a questão da inimpugnabilidade do acto, justifica-se a admissão do recurso de revista com fundamento na sua relevância jurídico social e também para melhor aplicação do direito.7. O acto impugnado, ao contrário do que se julgou no saneador-sentença, não tem como destinatários outros órgãos da administração pública e não esgotou os seus efeitos nas relações intra-subjectivas ou inter-orgânicas, tendo, pois, eficácia externa.8. São impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.9. Eficácia externa é a produção de efeitos na esfera jurídica de pessoas singulares, dos cidadãos (ou das pessoas colectivas de direito público ou privado).10. O artº 51º, nº 1 do CPTA não impõe uma lesão efectiva, admitindo para a impugnação judicial, a susceptibilidade, a possível lesão, a aptidão dos actos para lesarem esses direitos ou interesses.11. São impugnáveis esses referidos actos mesmo que inseridos num procedimento administrativo em decurso, isto é, quando ainda não haja acto definitivo horizontalmente, ou quando ainda não haja resolução final do procedimento administrativo, da relação jurídica estabelecida entre os cidadãos e a administração.12. Nos presentes autos, impugna-se um acto de abertura de concurso, inserido num procedimento cujo fim- ou seja, a atribuição de licenças de instalação de cartório notarial- será necessariamente lesivo dos direitos e interesses legalmente protegidos da recorrente, nos termos descritos na p.i..13. Ao julgar-se não lesivo, logo inimpugnável, o acto impugnado pela recorrente, violou-se no acórdão recorrido o disposto nos artº 2º, nº 1, 51º, nº 1 do CPTA e no artº 268º, nº 4 da CRP, respectivamente.14. Termos em que, com o douto suprimento, deve ser revogado o acórdão recorrido, declarando-se o acto impugnado verdadeiramente impugnável e ordenar-se o prosseguimento dos autos para as fases ulteriores do processo, nos termos legais.
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Contra-alegou o Ministério da Justiça CONCLUINDO assim:1) O presente recurso excepcional de revista não cumpre os requisitos previstos no artº 150º do CPTA.2) Encontram-se reunidos os pressupostos do recurso de uniformização de jurisprudência consignado no artº 152º do CPTA, pelo que atenta a natureza excepcional do recurso de revista, não pode o presente recurso ser admitido.3) Mas mesmo que assim se não entenda, o princípio da tutela jurisdicional efectiva não consubstancia, no caso concreto, “a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.”4) A questão que se pretende ver associada não se encontra associada a interesses especialmente importantes da comunidade, a matérias particularmente complexas ou a situações de erro manifesto ou grosseiro na decisão do aresto recorrido.5) A densificação dos pressupostos vertidos no nº 1 do artº 150º do CPTA que tem sido feita pela jurisprudência afasta a admissibilidade do presente recurso.6) O acto impugnado – despacho da Ministra da Justiça que autorizou e homologou a abertura do concurso para atribuição de licenças de instalação de cartório notarial, proferido em 30 de Março de 2004 e tornado público pelo Aviso nº 4994/2004, DR II Série, de 20 de Abril de 2004 – não reveste as características de impugnabilidade enunciadas no artº 51º do CPTA.7) O acto impugnado resume-se a ser um acto de execução de normas do regime transitório do Estatuto do Notariado, normas estas que assumem a natureza de actos legislativos.8) O acto impugnado inscreve-se num procedimento administrativo complexo, formado por diversas fases.9) O processo de atribuição de licenças e transformação do notariado pressupõe a tomada de uma série de actos, de diferente natureza, que culmina na atribuição de licença de instalação de cartório notarial.10) Até que tal se verifique não se pode, nem se deve, falar de qualquer situação consolidada do ponto de vista jurídico e não só.11) O acto impugnado deve ser perspectivado como acto interno, enquadrando-se no âmbito das relações inter-orgânicas, pelo que, consequentemente, apenas indirectamente se poderá reflectir no ordenamento jurídico geral.12) O acto impugnado, como mero acto de trâmite, preparatório e instrumental que é, limita-se a autorizar e a homologar a abertura do concurso, não sendo legítimo fazer-se do mesmo qualquer outra leitura de cariz mais abrangente.13) O despacho ministerial impugnado é, sem aporias, um acto inimpugnável.14) O sentido da decisão do acórdão recorrido apresenta-se como compaginável com as asserções jurídicas habituais nesta matéria e não coonestadas com erro flagrante ou palmar, tendo sido dado efectivo cumprimento à moldura legal aplicável, designadamente ao consignado no artº 51º do CPTA.15) De igual modo, não se regista qualquer violação ao estatuído no nº 4 do artº 268º da CRP.
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Por acórdão proferido a fls. 640 e segs., foi a revista liminarmente admitida, nos termos do nº 5 do artº 150º do CPTA.Foi cumprido o artº 146º, nº 1 do CPTA, nada tendo dito o MP.Após vista aos Exmos Adjuntos, vêm agora os autos à conferência, para decisão.
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II- OS FACTOS O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:1- A Recorrente exerce a profissão de Notária no Cartório Notarial de Nisa, sendo funcionária dos serviços externos da Direcção Geral dos Registos e Notariado, serviço do Estado integrado no Ministério da Justiça.2- No DR, II Série nº 93, de 20 de Abril de 2004, foi publicado o Aviso nº 4994/2004, onde foi autorizada e homologada a abertura de concurso para a atribuição de licenças de instalação de cartório notarial.3- A ora Recorrente candidatou-se à atribuição de licença de instalação do Cartório Notarial de Nisa e do seu requerimento consta a declaração de reserva feita nos termos do artº 56º, nº 1 e 2 do CPTA.
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III- O DIREITO1. A questão jurídica objecto da presente revista é a de saber se o acórdão recorrido, ao julgar verificada a excepção de inimpugnabilidade do despacho da Senhora Ministra da Justiça de 30.03.2004, que autorizou e homologou a abertura do concurso para a atribuição de licenças de instalação de cartório notarial, despacho cuja nulidade foi peticionada na presente acção, violou os artº 2º, nº 1 e 51º, nº 1 do CPTA e o artº 268º, nº 4 da CRP, como pretende a recorrente (cf. conclusões 7ª a 14ª das alegações de recurso, supra transcritas).O acórdão recorrido alicerçou a sua decisão nos seguintes fundamentos:«… o acto em crise que autorizou e homologou a abertura do concurso porque se insere num acto complexo de formação sucessiva, inscreve-se no domínio das “decisões administrativas preliminares”, assumindo a natureza de um acto interno de autorização, integrativo da validade do acto de abertura do concurso.Como tal, é um acto interno que não contém em si lesividade autónoma para os particulares, porquanto o seu destinatário é o órgão beneficiário da autorização e homologação, enquanto condição necessária à abertura do concurso.Não tendo, pois, o acto em questão efeitos externos imediatos necessariamente é desprovido de lesividade actual, no âmbito da causa de pedir, para os direitos e interesses que a ora Recorrente veio defender.Com efeito, como ensinam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha in Comentário ao CPTA, Almedina, 2005, págs. 258 e segs. “são externos os actos que produzem efeitos jurídicos no âmbito das relações entre a Administração e os particulares ou que afectam a situação jurídico-administrativa de uma coisa. Ao que, hoje, se devem acrescentar os actos que se inscrevem no âmbito de relações entre entidades públicas. Por contraposição, actos internos são aqueles que se inscrevem no âmbito das relações inter-orgânicas ou das relações de hierarquia e que apenas indirectamente se poderão reflectir no ordenamento jurídico geral”.Mais adiantam os referidos Autores in ob cit. Pág. 261 que “A susceptibilidade de afectar direitos ou interesses legalmente protegidos (segmento final do nº 1) constitui um mero critério da impugnabilidade do acto – definido em função da garantia constitucional estabelecida no nº 4 do artº 268º da CRP e não um requisito absoluto do conceito. Com efeito, a virtualidade de o acto lesar um concreto interesse individual é sobretudo uma condição de legitimidade activa, que opera apenas em relação às acções impugnatórias de função subjectiva – artº 55º, nº 1 a) e d).”Do que ficou exposto resulta que o acto impugnado não regula a situação da aqui Recorrente perante a Administração, seja individualmente seja enquanto elemento da categoria profissional dos Notários. O seu destinatário, como se referiu supra, é o órgão beneficiário da autorização e da homologação e a sua eficácia esgota-se (porque a sua finalidade é alcançada) com a concessão da autorização, enquanto condição necessária da abertura do concurso.E, a existir alguma lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos da ora Recorrente, ele só pode advir do acto final ou de um acto destacável no procedimento do concurso, legitimado ou não pelo Estatuto do Notariado.Resta, pois concluir pela ocorrência da excepção da inimpugnabilidade do acto em crise, tal como foi decidido no despacho saneador a quo.» 2. Salvo o devido respeito, o acórdão recorrido não fez, a nosso ver, uma correcta interpretação e aplicação do artº 51º, nº 1 do CPTA.Dispõe este preceito legal que «Ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.» Este é hoje o conceito-regra de acto administrativo para efeitos processuais ou impugnatórios.Mas analisemos mais detalhadamente o supra transcrito preceito legal.Antes de mais, pressuposto da impugnabilidade face ao mesmo é que se esteja perante um acto administrativo. O conceito de acto administrativo encontra-se definido no artº 120º do CPA, que dispõe que «Para os efeitos da presente lei, consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visam produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta».Porém, esta definição reconduz-se, no essencial, aos elementos tradicionalmente apontados pela doutrina e pela jurisprudência como caracterizadores do acto administrativo, não só do ponto de vista procedimental ou material, mas também contencioso.Com efeito, o conceito de acto administrativo tradicionalmente acolhido para efeitos contenciosos, considera-o como uma decisão autoritária e unilateral de um órgão da Administração, ao abrigo de normas de direito público, que visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, e, portanto, não diverge substancialmente da definição contida no artº 120º do CPA Cf. Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, I, pg. 428, Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. III, pg. 66; Rogério Soares, Direito Administrativo, Coimbra, 1978, pg. 76; e Mário Esteves de Oliveira e outros, Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2ª edição, pg. 550 e por todos, o ac. Pleno da 1ª Secção de 18.04.02, rec.44067. Contudo, ao definir o acto administrativo apenas para os efeitos do CPA,o legislador parece ter aberto a possibilidade de ser adoptada outra definição para efeitos contenciosos. Neste sentido se pronunciaram Mário Esteves de Oliveira e outros, ob. Cit, p. O que, de facto, veio a acontecer com o já citado artº 51º, nº 1 do CPTA, como se verá adiante.Mas voltando ao artº 120º do CPA, verificamos que o conceito material de acto administrativo, se circunscreve aos actos de conteúdo decisório.Cf. Prof. Mário Aroso de Almeida, Considerações em Torno do Acto Administrativo Impugnável, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Vol. II, p. 266 e segs.. Também no sentido de que o conceito de eficácia externa não é atributo do acto administrativo, vide o Prof. Vieira de Andrade, Sumários de Direito Administrativo, Ano Lectivo 2005-2006, 2º Ano, Coimbra, p.63, e in A Justiça Administrativa, 4ª ed., p. 196, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, Regime do Acto Administrativo, p.38, Pedro Gonçalves, “A justiciabilidade dos litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública”, in CJA, nº 35, p 16. Ficam assim de fora desse conceito, a generalidade dos actos preparatórios do procedimento administrativo, também chamados actos de trâmite ou instrumentais (propostas, pareceres não vinculativos, informações, etc). Ora, se bem que o acto aqui impugnado, que autoriza e homologa a abertura de concurso para atribuição de licenças para instalação de cartórios notariais, seja, por natureza, um acto preparatório, na medida em que visa dar início a um procedimento concursal que termina com a decisão principal - a atribuição das referidas licenças,tal acto não deixa de ter conteúdo decisório,constituindo, assim, uma decisão preliminar relativamente à decisão final do concurso que autoriza.Aliás, como já vinha sendo reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, o acto de abertura de concurso se bem que seja «… em si um acto preparatório, na medida em que visa pôr em marcha uma série de actos que termina com uma decisão, … raramente é um puro acto de trâmite, na medida em que a abertura de concurso está associada ou integra a produção de outros efeitos jurídicos, para além desse de iniciação procedimental» Cf. Prof. Vieira de Andrade, RLJ Ano 132º, p. 316 e ac. STA De resto, o acórdão recorrido não nega, e antes afirma, o conteúdo decisório do acto impugnado. No entanto, afasta a sua impugnabilidade, por entender, em síntese, que o acto impugnado é um mero acto interno,já que a sua eficácia se esgota com a concessão da autorização ao órgão beneficiário da autorização, não regulando, assim, a situação jurídica do autor perante a administração, carecendo, por isso, de lesividade actual, pois a existir qualquer lesão ela só poderia advir da decisão final do procedimento concursal ou de qualquer acto destacável do procedimento. Ora, como se verá de seguida, o acto aqui impugnado, não obstante a sua natureza de decisão preliminar e preparatória de um procedimento concursal, é, por si só, produtor de efeitos externos, e, por isso, é contenciosamente impugnável.3. O conceito de acto administrativo para efeitos processuais foi sendo elaborado pela doutrina e pela jurisprudência, a partir do artº 25º da LPTA.Inicialmente considerava-se como tal o acto administrativo definitivo e executório, exigindo-se para o efeito uma tripla definitividade (material, horizontal e vertical) Cf. a este propósito, o Prof. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, 1989, vol. III, p. 238. .Com a revisão constitucional de 1989, o citado preceito legal passou a ser interpretado à luz do nº 4 do artº 268º da CRP, o que implicou que a discussão sobre a impugnabilidade dos actos administrativos se deslocasse da definitividade para a lesividade do acto administrativo, uma vez que aquele preceito constitucional garantia agora a impugnação contenciosa de actos administrativos efectivamente lesivos de direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados (lesividade actual). Cf. a este propósito, o citado ac. do Pleno de 18.04.2002, rec. 44067 e ac. STA de 14.01.2004, rec. 1575/03 A partir da entrada em vigor do CPTA, o conceito de acto administrativo para efeitos contenciosos foi consagrado, como vimos, expressamente, no artº 51º, nº 1 do CPTA, verificando-se que, não só a definitividade, mas também a lesividade do acto deixou de constituir atributo da sua impugnabilidade, como, de resto, se fez constar da Proposta de Lei 92/VIII, que contém a Exposição de Motivos do CPTA, onde se refere que «…procurou definir-se o acto administrativo impugnável tendo presente que ele pode não ser lesivo de direitos ou interesses individuais, mas sem deixar, de harmonia com o texto constitucional, de sublinhar o especial relevo que a impugnação de actos administrativos assume nesse caso. Por outro lado, deixa de se prever a definitividade como um requisito geral da impugnabilidade, não se exigindo que o acto tenha sido praticado no termo de uma sequência procedimental, ou no exercício de uma competência exclusiva para poder ser impugnado» (cf. seu ponto 2, nº 10).E, na verdade, como decorre do já citado artº 51º, nº 1 do CPTA e é entendimento da doutrina dominante, hoje, a impugnabilidade do acto administrativo, depende apenas da sua externalidade, ou seja, da susceptibilidade de produzir efeitos jurídicos que se projectem para fora do procedimento onde o acto se insere Cf. neste sentido o Prof. Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª Ed., p.135/136, de novo Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilhe, CPTA comentado, 2ª ed., notas 1, 2 e 3 ao artº51º do CPTA, p. 306 a 313 e Prof. Vieira de Andrade, A nova Justiça Administrativa, , desse modo, podendo afectar a ordem jurídica exterior, em especial no âmbito das relações entre a administração e os particulares (lesividade potencial). Com efeito, como salienta o Prof. Mário de Aroso de Almeida, «a referência que, no artº 51º, nº 1, é feita à eficácia externa tem apenas que ver com a natureza (interna ou externa) dos efeitos que o acto se destina a produzir e não com a questão de saber se, no momento em que é impugnado, o acto está efectivamente a produzir os efeitos a que se dirige. Sobre esse outro aspecto, diferente do primeiro rege o artº 54º, que, aliás, admite a impugnação de actos que ainda não tenham começado a produzir efeitos jurídicos»Ora, se o que releva hoje, para efeitos impugnatórios, é apenas a eficácia externa do acto, nos termos sumários atrás referidos, então, e contrariamente ao decidido, torna-se irrelevante, para aferir da impugnabilidade do acto aqui sub judicio, que ele seja definitivo ou não,lesivo ou não,bem como a sua localização no procedimento (início, meio ou termo). Assim, qualquer decisão administrativa pode ser hoje impugnável, questão é que o seu conteúdo projecte efeitos jurídicos para o exterior,i.e tenha eficácia externa.A impugnabilidade do acto, embora indissociável da questão da legitimidade para o impugnar, não se confunde com ela, situando-se num plano anterior, de cariz objectivo e não subjectivo, sendo, por isso, no âmbito da legitimidade que hoje se deve hoje colocar a questão da lesividade do acto, que, como referimos, já não constitui atributo da sua impugnabilidade Cf. neste sentido, Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo …, p. 135, e o mesmo autor e Fernando Cadilhe, CPTA, anotado, p. 311 e ainda Prof.. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 3ª ed., Coimbra 2000, p.242/3 . O que, de resto, está de acordo com o princípio da tutela judicial efectiva, consagrado no artº 2º do CPTA e no artº 268º, nº 4 da CRP.4. E, também, contrariamente ao sustentado no acórdão recorrido, o acto impugnado não esgotou a sua eficácia no interior da administração, como o demonstra a autora nas suas alegações e decorre das particularidades do contexto legal em que o mesmo se insere.O acto impugnado foi praticado ao abrigo do Decreto-Lei nº 26/2004, de 24.08, diploma que aprovou o Novo Estatuto do Notariado.Como decorre do respectivo preâmbulo, o referido diploma insere-se «no âmbito do plano de reformas estruturais da Administração Pública do XV Governo Constitucional» e através dele foi operada «a privatização do notariado», «passando do regime da função pública para o regime de profissão liberal». Refere-se mais adiante que, «Tratando-se de uma reforma de grande complexidade e inovação, geradora de naturais perturbações no meio notarial, impõe-se que a mesma se concretize de modo progressivo, pelo que se estabeleceu um período transitório de dois anos, durante o qual coexistirão notários públicos e privados, na dupla condição de oficial público e profissional liberal, no termo do qual só este último sistema vigorará. Durante este período transitório, os notários terão de optar pelo modelo privado ou, em alternativa, manter o vínculo à função pública, sendo, neste caso, integrados em conservatórias dos registos.» 6. Dispõe, por sua vez, o artº 106º, nº 2 do citado Dec. Lei, que «Durante o período de transição deve proceder-se ao processo de transformação dos actuais cartórios, à abertura de concursos para atribuição de licenças, à resolução das situações funcionais dos notários e dos oficiais que deixem de exercer funções no notariado e demais operações jurídicas e materiais necessárias à transição.» (negrito nosso)Nos termos do artº 34º do referido diploma legal:1. As licenças para instalação de cartório notarial são postas a concurso consoante as vagas existentes.2. O concurso é aberto por aviso do Ministério da Justiça, publicado no Diário da República, ouvida a Ordem dos Notários.3. As vagas são preenchidas de acordo com a graduação dos candidatos e as referências de localização dos cartórios manifestadas no respectivo pedido de licença.4. Os notários que integrem a bolsa de notários gozam de bonificações específicas na graduação, de acordo com o número e a duração das substituições efectuadas, nos termos a definir pela Ordem dos Notários» (negrito nosso)Dispõe, por sua vez, o artº 107º do mesmo diploma, sob a epígrafe «Regime»:1- É reconhecida aos actuais notários a possibilidade de optarem por uma das seguintes situações:a) Transição para o novo regime do notariado.b) Integração em serviço da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado.2- A opção referida na alínea a) do número anterior é feita mediante requerimento de admissão ao concurso para a atribuição de licença dirigido ao Ministro da Justiça e entregue na Direcção Geral dos Registos e do Notariado, no prazo de 30 dias a contar da abertura do concurso previsto no artº 123º deste diploma.3- Da ausência de entrega do requerimento presume-se, pós o decurso do período referido no número anterior, que o notário faz a opção referida na alínea b) do nº 1. 4- É reconhecido aos notários que optarem pelo novo regime de notariado previsto na alínea a) do nº 1, o benefício de uma licença sem vencimento com a duração máxima de cinco anos contados da data de início de funções.5- O notário beneficiário da licença prevista no número anterior pode requerer a todo o tempo o regresso ao serviço na Direcção-Geral dos Registos e do Notariado para lugar do quadro paralelo criado nos termos do nº 1 do artigo 109º deste diploma.6- O notário que, ao abrigo do número precedente, requeira o regresso ao serviço fica inibido de novamente se habilitar a concurso para atribuição de licença de instalação de cartório notarial. (negrito nosso)O artº 123º a que se alude no nº 2 do artº 107º respeita ao «Primeiro Concurso», dispondo o seguinte: 1. É reconhecido o direito de se apresentarem ao primeiro concurso para atribuição de licença de instalação de cartório notarial aos notários, aos conservadores dos registos, aos adjuntos de conservador e de notário e aos auditores dos registos e do notariado.2. O concurso é documental e, na graduação dos concorrentes, deve ter-se em conta a classificação de serviço, a antiguidade no notariado, o currículo do interessado e, no caso dos auditores, a classificação obtida no procedimento de ingresso.3. A graduação é numérica e deve resultar da ponderação atribuída aos critérios referidos no número anterior.4. O notário que concorra ao lugar de que é titular à data da abertura do concurso goza de preferência absoluta na atribuição da respectiva licença. (negrito nosso)A abertura do concurso para atribuição das licenças a que alude o nº 2 do citado artº 106º, foi autorizada pelo acto aqui impugnado, nos termos dos artº 34º e 123º do citado DL 26/2004, conforme Aviso nº 4994/2004 do Ministério da Justiça, publicado no DR II Série, de 20.04.7. Ora, atento o contexto legal atrás referido em que o acto foi praticado, assiste razão à autora quando diz que o mesmo é, desde logo, susceptível de produzir efeitos jurídicos no âmbito das relações da administração com os notários visados pelo citado DL, e, portanto, independentemente da decisão final do concurso em causa.Basta ver que, com a publicação do aviso de abertura do concurso autorizado pelo acto impugnado, se abriu o prazo de 30 dias para apresentação das candidaturas, o que atento o supra referido contexto legal em que aquele concurso se insere, designadamente o disposto nos nº 1 e 3 do artº 107º do Dec. Lei e nos nº 1 e 4 do artº 123º, obrigou os notários públicos, então em exercício, como era o caso da autora, a apresentar a sua candidatura a concurso para atribuição de licença para instalação de cartório notarial privado, sob pena de, não o fazendo, se presumir que optavam pela integração em serviço da Direcção Geral dos Registos e do Notariado e de, simultaneamente, perderem a preferência conferida pelo nº 4 do citado artº 123º neste primeiro concurso.Portanto, o acto aqui impugnado, que a autora considera ilegal, por alegadamente ter sido praticado ao abrigo de normas inconstitucionais, produziu, desde logo, efeitos na esfera jurídica dos notários em exercício de funções à data da abertura do concurso, entre eles a autora, independentemente da decisão final do concurso e, nessa medida, tem eficácia externa, pelo que pelas razões atrás referidas e as demais já desenvolvidas nos pontos 2 e 3 supra, é tal acto impugnável, face ao artº 51º, nº 1 do CPTA.Procedem, pois, as conclusões das 7ª a 14ª das alegações da recorrente, pelo que o acórdão recorrido e a sentença da 1ª Instância não se podem manter.
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IV- DECISÃOTermos em que acordam os juízes deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e o decisão da 1ª Instância, devendo os autos prosseguir seus termos, se nada mais a tal obstar. Custas pelo recorrido neste STA e no TCA, fixando a taxa de justiça em 5 UC (TCA) e 8 UC (STA), respectivamente.Lisboa, 16 de Dezembro de 2009. – Fernanda Martins Xavier e Nunes (relatora) – Maria Angelina Domingues – António Bento São Pedro.

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