segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Uma leitura interessante.

Intervenção oral proferida pelo Dr. Bernardo Ayala1

ASPECTOS PROCESSUAIS DA REFORMA DO CONTENCIOSO
ADMINISTRATIVO
Antes de mais, bom dia, é um prazer este desafio que me foi lançado e que consiste em
falar durante cerca de 30 a 35 minutos sobre algumas principais inovações da Reforma
do Contencioso Administrativo. Eu vou tentar, por todos os meios, respeitar esse limite
temporal e deixar alguns minutos finais para alguns eventuais esclarecimentos.
1 - Antes de entrar nos pormenores técnicos e jurídicos da Reforma, e correndo o risco
de repetir algo que já tenham ouvido, gostava de deixar uma breve nota sobre o contexto
em que esta Reforma foi iniciada. A Reforma é o resultado de um trabalho de cunho
legislativo bastante prolongado no tempo, mas que teve a antecedê-la um estudo
minucioso sob os pontos de vista da eficiência, da economia e da organização dos
tribunais. Eu tive na altura a felicidade de ter participado nesse estudo prévio ao
trabalho legislativo, em parceria com uma empresa de consultadoria, e eu penso que não
se conseguirá compreender cabalmente o contexto legislativo e jurídico da Reforma, se
não se compreender aquilo que existia, e que em larga medida ainda existe, antes de ela
entrar em vigor.
Quando a Reforma começou a ser preparada, nós tínhamos em Portugal um Supremo
Tribunal Administrativo, um Tribunal Central e quatro Tribunais Administrativos de
Círculo em funcionamento. Naquele trabalho pré-legislativo de análise da organização e
do funcionamento dos tribunais calhou-me em sorte visitar, na altura, os Tribunais
Administrativos de Círculo do Porto e Coimbra e, apenas para terem uma ideia daquilo
que eu encontrei, posso dizer-vos que no tribunal do Porto, que cobre uma vastíssima
zona do país, havia na altura cinco juizes, um dos quais de baixa. O volume de
pendências era verdadeiramente inacreditável e os juizes tinham, e penso que continuam


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O presente texto resulta da mera transcrição escrita da exposição oral realizada no Colóquio sobre a
Reforma do Contencioso Administrativo, realizado no auditório Cardeal de Medeiros, na Universidade
Católica Portuguesa, em Lisboa, no dia 4 de Dezembro de 2003, organizado pelo Gabinete de Política
Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça e pela Deloitte.
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a ter, condições de trabalho muito difíceis, gabinetes muito deficientes, e havia apenas
uma sala de audiências no Tribunal do Porto.
O Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra era pior ainda, pois o tribunal está
instalado num 4.º andar de um Centro Comercial, com um elevador onde não cabe, por
exemplo, uma cadeira de rodas (e penso que é no Tribunal Administrativo de Círculo de
Coimbra que se julgam as acções de responsabilidade civil da Administração por
acidentes de viação do IP5, de todas aquelas vias extraordinariamente complicadas).
Neste tribunal, para além do mais, também só há uma sala de audiências, exposta ao
Sol, sem ar condicionado e, pasme-se, não havia sequer um registo completo dos
Diários da República. Quando havia necessidade de consultar um Diário da República
no âmbito de um processo, os juizes ou funcionários tinham de atravessar a rua , para
irem ao outro lado, ao Tribunal do Trabalho, e aí, sim, consultar o DR. Também não
havia, nessa altura, internet instalada. Quem quisesse aceder à jurisprudência
comunitária praticamente tinha de ir a Bruxelas, enfim, não tão longe, mas pelo menos
no tribunal não havia, de facto acesso a bases de dados de jurisprudência. Havia em
Coimbra quatro juizes na altura, um dos quais de baixa, portanto as pendências do
tribunal eram asseguradas por três pessoas.
No Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por exemplo, não havia sequer livro
de entradas dos processos, portanto os processos iam entrando e não havia um registo
central dos processos que o tribunal na altura tinha pendentes.
E foi neste contexto que a Reforma se iniciou, e foi neste contexto que se abriu um
concurso para admissão de mais juizes para os tribunais administrativos e que os
trabalhos legislativos se foram desenvolvendo.
Escusado será dizer que muitos dos aspectos da Reforma correm, infelizmente, o risco
de, aqui ou ali, serem letra morta se a Reforma legislativa não for efectivamente
acompanhada de uma infraestruturação substancial e de uma revisão dos tribunais, das
condições e métodos de trabalho. Penso que tem de haver uma visão de conjunto, sob
pena do trabalho legislativo ser, por si só, insuficiente.
2- Quais são os principais objectivos da Reforma? E aqui simplificando muito, eu vou
elencar dois, admito que possam existir outros: em primeiro lugar a adopção de um
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modelo de justiça administrativa mais conforme com o modelo constitucional, e mas
conforme, designadamente, sob o ponto de vista da tutela jurisdicional efectiva. Como
julgo que já terão ouvido em sessões anteriores, e eu daqui a pouco vou desenvolver
muito mais, a Reforma assenta num princípio de tutela jurisdicional efectiva, e assenta
efectivamente, pelo menos na letra da lei. Então, houve um intuito de aproximação de
um modelo constitucional designadamente do artigo 268º da Constituição. Em segundo
lugar a Reforma pretende também por diversas vias, que já lá vamos, combater a
morosidade processual Não que a justiça administrativa em Portugal seja
substancialmente mais atrasada, ao contrário daquilo que se poderia pensar, do que a
justiça administrativa noutros países. Se se consultarem as estatísticas, a justiça
administrativa em Portugal não é substancialmente mais atrasada que em Espanha,
França ou Alemanha. É um pouco mais atrasada mas não substancialmente mais
atrasada. Seja como for, há uma noção clara que a justiça deveria ser mais célere
sobretudo nas providências cautelares. Há providências cautelares em Portugal que, por
vezes, demoram bem mais de um ano, entre a primeira e a segunda instância, portanto,
há um intuito legislativo de acelerar o processo, através de mecanismos que lá irei
dentro em pouco.
3 - Principais inovações, antes de mais, inovações num plano geral, portanto sem descer
às miudezas do processo. Há claramente uma ampliação do âmbito da justiça
administrativa, ou seja, há aspectos que até à entrada em vigor da Reforma não estão
compreendidos na justiça administrativa e passarão a estar compreendidos a partir do
momento em que a Reforma entrar em vigor. Eu destacarei fundamentalmente dois, são
os dois exemplos de escola, perdoar-me-ão se já os tiverem ouvido vezes sem conta,
mas são os dois exemplos que eu penso que melhor ilustram esta ampliação do âmbito
da justiça administrativa.
Em primeiro lugar, há uma ampliação naquilo que respeita à actividade contratual da
Administração. Se nós formos ao artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais veremos que nas alíneas e) e f) do respectivo n.º 1 o legislador pretende e
consegue cobrir um sector mais alargado da actividade contratual da Administração, por
comparação com aquele que hoje em dia é coberto. Por exemplo passam a ser sujeitos
aos tribunais administrativos os contratos a respeito dos quais haja um procedimento
pré-contratual de direito público. Qual é a situação que nós temos hoje em dia? Hoje em
dia nós temos, de acordo com a jurisprudência e de acordo com a larguíssima maioria da
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doutrina que se pronunciou sobre estas questões, nós temos contratos administrativos,
que segue o regime do direito público, e temos os contratos de direito privado, que
seguem fundamentalmente um regime de direito privado. Mas os contratos de direito
privado podem por vezes ser antecedidos de concursos públicos ou de procedimentos,
concorrenciais ou não, de direito público. A situação que nós hoje temos hoje em dia é a
seguinte: se um contrato de direito privado da Administração, uma aquisição, um
fornecimento que não seja contínuo, uma compra e venda, qualquer outro tipo de
contrato de direito privado celebrado pela Administração que seja antecedido de um
procedimento de direito público, a situação é mais ou menos a seguinte - litígios em
torno do procedimento pré-contratual de direito público são julgados pelos tribunais
administrativos, mas litígios respeitantes ao contrato, que é um contrato de direito
privado, são julgados pelos tribunais comuns. Pois bem, a Reforma veio unificar a
competência para apreciar estes litígios e diz-se doravante que a justiça administrativa
compreende litígios respeitantes à interpretação, validade e execução de contratos, de
direito público ou de direito privado, a respeito dos quais haja um procedimento pré-
contratual regulado por normas de direito público. Na actividade contratual houve uma
certa ampliação da justiça administrativa.
Mais impreciso talvez aquilo que se passa relativamente ao segundo domínio que eu vos
ía referir, que é o da responsabilidade civil da Administração. Antes, todavia, de
mencionar esse domínio, um breve parênteses para vos dizer que a Reforma é, neste
momento, ainda uma Reforma incompleta, para já, é uma Reforma com alguma
turbulência, embora controlada, porque ainda antes de entrar em vigor já foi
formalmente alterada uma vez que, a Reforma vai entrar em vigor em 1 de Janeiro de
2004, e já foi alterada em Fevereiro de 2003, portanto durante um período de vacacio-
legis . E, para além disso, está em curso neste momento, uma segunda alteração à
Reforma antes dela entrar em vigor. No âmbito desta segunda alteração prevê-se que, no
campo da responsabilidade civil da Administração, aos tribunais administrativos passa a
caber o julgamento de litígios respeitantes a todas as questões de responsabilidade civil
extracontratual das pessoas colectivas de direito público. Mais uma vez qual é a situação
que nós temos hoje? Hoje temos uma distinção contestada na doutrina mas firme na
jurisprudência, entre a responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão
pública e a responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão privada. Mais
tempo houvesse e eu entraria nessa distinção, mas, não havendo, tenho apenas de a dar
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sem mais desenvolvimentos. Actualmente, o julgamento das questões de
responsabilidade civil da Administração por actos de gestão pública cabe aos tribunais
administrativos, diferentemente do que se passa com as questões de responsabilidade
civil extracontratual por actos de gestão privada que cabe aos tribunais comuns.
De acordo com a Reforma, todas as questões de responsabilidade civil extracontratual
das pessoas colectivas de direito público - reparem bem na expressão do legislador, o
legislador quis ser claro e smi-pedagógico, quis claramente indicar qual é o caminho e
qual é a ideia - passam a caber aos tribunais administrativos, trate-se de
responsabilidade por actos de gestão pública ou por actos de gestão privada. Para além
disto, e num segundo plano de responsabilidade, passa a caber também aos tribunais
administrativos o julgamento de litígios que tenham que ver com responsabilidade pelo
exercício da função política, da função legislativa, ou da Administração da justiça, é um
segundo domínio de alargamento.
Portanto, por um lado a justiça administrativa passa a absorver a responsabilidade civil
extracontratual da Administração por actos de gestão privada, para além da gestão
pública que já era tradicional, por outro lado absorve também a responsabilidade por
actos da função política, da função legislativa e da administração da justiça. Esta era a
primeira ideia de ordem geral.
Segunda ideia de ordem geral: por comparação com a situação que actualmente temos, a
Reforma caminha num sentido que se pode considerar de maior subjectivismo. O
contencioso administrativo português é tradicionalmente um contencioso
eminentemente objectivista, de controlo da legalidade, essencialmente. Com a Reforma,
há, por um lado, um reforço da ideia de que o processo administrativo é cada vez mais
um processo de partes. Não deixa de ser um controlo da legalidade objectiva mas é
gradualmente, e cada vez mais, um processo de partes. Por outro lado, há um
alargamento claro, nítido, dos poderes de cognição e dos poderes de decisão do juiz
perante a Administração e em defesa do particular, reflexamente. Portanto, o pendor
subjectivista foi acentuado. Todavia há ainda ingredientes claros de algum
objectivismo: i) desde logo no que respeita à legitimidade activa, designadamente na
Acção Administrativa Especial; ii) a uma série de poderes remanescentes do Ministério
Público, que não foram eliminados (o M. P. continua a ter uma presença processual
importante); iii) e ainda, em algo que é tradicional de Portugal e que faz todo o sentido,
que é o conhecimento oficioso pelo juiz de ilegalidades de um acto administrativo que
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seja impugnado. Na verdade, o juiz não está limitado à causa de pedir utilizada pelo
interessado, pode ele próprio conhecer oficiosamente de ilegalidades que o particular
não tenha suscitado.
Estas são as duas grandes observações de ordem geral.
Quanto a organização jurisdicional, porventura já terão falado disto também, portanto
não me alongarei, queria apenas dizer que, no quadro da Reforma, há uma alteração que
roça o radical na organização dos tribunais administrativos. A um tempo porque se
prevê um aumento significativo dos tribunais administrativos de círculo, que ficarão
espalhados, mais ao menos, por todo o território nacional. Por outro lado, porque os
tribunais administrativos de círculo verão substancialmente reforçada a sua competência
de primeira instância. Por exemplo, actualmente um acto administrativo praticado por
um ministro, seja ele qual for, é julgado em primeira instância pelo Supremo Tribunal
Administrativo, com excepção de alguns casos que cabem ao Tribunal Central, mas
escusamos de ir aí agora, designadamente no domínio da função pública. Mas excluindo
esses casos, que não se podem considerar marginais porque ocupam um volume
significativo das pendências dos tribunais, actualmente os actos dos ministros são da
competência primária, de primeira instância, do Supremo Tribunal Administrativo. Pois
bem, com a Reforma, o Supremo Tribunal Administrativo apenas será competente em
primeira instância para apreciação de actos administrativos do Conselho de Ministros,
do Primeiro Ministro ou de outras autoridades superiores do Estado. Mas no que
respeita à Administração propriamente dita, Primeiro Ministro e Conselho de Ministros.
Significa que os tribunais superiores passam a funcionar fundamentalmente como
tribunal de recurso, o que parece globalmente bastante positivo, ao passo que aos
tribunais de círculo é conferida uma competência, que se pode dizer regra, de primeira
instância. Veremos na prática como isto funciona, porque em boa verdade, sem
desprimor para ninguém, há uma série de actos de ministros individualmente
considerados que têm, não só importância estruturante para a condução política
económica e administrativa do país, mas que jogam muitas vezes com uma gama
diversificadíssima de interesses. E a verdade é que o Supremo Tribunal Administrativo,
composto por juizes já com muitos anos de experiência e em regra julgando
colegialmente, apresentava à partida melhores condições para apreciar esses actos que,
provindo de órgãos que estão colocados no topo da Administração Pública, buliam com
interesses estruturantes do país. Veremos se os tribunais administrativos de círculo,
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agora com composição renovada, conseguem, no fundo, usar em relação a actos deste
tipo da mesma prudência que o Supremo Tribunal Administrativo foi utilizando ao
longo dos anos.
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Visto isto, passamos às principais inovações no campo do processo que era aquilo
que fundamentalmente me trazia.
O processo, repito, está disciplinado na Lei n.º 15/ 2002, de 22 de Fevereiro, que foi
alterada pela lei 4-A/2002, de 19 de Fevereiro, e que vai ser alterada novamente a curto
prazo.
Primeira ideia, que já aqui aflorei é o seguinte: há um reforço do princípio da tutela
jurisdicional efectiva. Esse reforço só é relevante na medida em que ao longo do
diploma foram introduzidas inovações que são importantes para este efeito, mas é
relevante também porque logo no artigo 2.º há uma afirmação clara e inequívoca de um
princípio de tutela jurisdicional efectiva e há, designadamente no n.º 2, uma indicação
bastante desenvolvida daquilo em que pode consistir esse princípio. E essa indicação é
feita como? É feita, e esta é a segunda nota, ele é concretizado, desde logo, e isto
percebe-se pelo artigo 2.º, n.º 2 do Código, através da adopção de um modelo de plena
jurisdição. Actualmente, e até à entrada em vigor da Reforma, o contencioso
administrativo está, em larga medida, assente no recurso de contencioso de anulação de
actos administrativos, que é, como o próprio nome indica, um meio processual de mera
anulação. Não há plena jurisdição da parte do juiz, há plena jurisdição no campo das
acções sobre contratos, sobre responsabilidade civil, mas no campo da apreciação de
actos administrativos não há actualmente plena jurisdição. Pois bem, a Reforma no seu
artigo 2.º, n.º 2 vem criar, e agora esperemos que se sedimente, um modelo de plena
jurisdição. E esse modelo de plena jurisdição percebe-se lendo as várias alíneas do
artigo 2º, nº 2, porque ao lermos as várias alíneas do artigo 2º, nº 2, nós ficamos com
uma noção das pretensões teoricamente possíveis no âmbito do processo, pretensões dos
particulares interessados, e ficamos com uma noção também dos poderes correlativos do
juiz. O artigo 2º, nº 2 permite-nos perceber essas duas vertentes, o que um particular
pode pedir e o que o juiz lhe pode dar. E verificamos que na generalidade das formas do
processo, o juiz passa a ter poderes declarativos, constitutivos, condenatórios,
intimativos, preventivos., executivos e por aí fora. Portanto, há claramente um
alargamento do poder do juiz e, designadamente, do poder do juiz sobre a
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Administração. O juiz passa a poder intimar a Administração na generalidade dos
processos, actualmente só o pode fazer em casos absolutamente excepcionais, nos
domínios do direito do urbanismo e pouco mais. O juiz passa a ter um poder, em
determinados casos e no âmbito do processo executivo, portanto na fase da execução de
sentenças, de se substituir à própria Administração através da ignição de uma sentença
substitutiva. Portanto, há claramente um alargamento, não só das pretensões possíveis,
mas também dos correlativos poderes de cognição e de decisão do juiz.
Sem entrar em grandes pormenores, a Reforma veio condensar uma gama muito
heterogénea de meios processuais que hoje em dia existem em dois meios processuais
principais, que porventura já terão ouvido falar deles. Esses dois meios processos
principais são a Acção Administrativa Comum, cujo âmbito surge definido nos artigos
37.º e seguintes, e a Acção Administrativa Especial, cujo âmbito surge definido no
artigo 46.º. Eu não vou entrar em pormenores quanto ao âmbito de cada um destes
meios processuais nem quanto à sua tramitação, não há tempo para isso infelizmente,
sempre direi, pois isto é uma nota que merece ser realçada, que no contexto da Reforma
desaparece formalmente a figura do tradicional recurso contencioso de anulação de
actos administrativos. Desaparece com esse nome, deixa de se falar em recurso
contencioso de anulação de actos administrativos. A impugnação de actos
administrativos, e a expressão impugnação de actos administrativos resulta da própria
Constituição da República Portuguesa, passa a estar incluída na tal Acção
Administrativa Especial, que tem um regime próprio no artigo 46.º, tendencialmente
uniforme, o que se percebe quer no artigo 35.º, n.º 2, quer nos artigos 78.º e seguintes.
Não obstante a previsão de uma Acção Administrativa Especial com regime
tendencialmente uniforme, dentro desta acção há depois uma série de, chamemos-lhe
assim, de sub acções ou de sub formas de processo com regimes especiais. Eu aqui
destacaria obviamente o regime da impugnação de actos administrativos, que continuará
seguramente a desempenhar um papel central no modelo de justiça administrativa
(artigos 50 e seguintes), também a acção para a condenação à prática de acto devido (
artigos 66 e seguintes), também têm um regime processual próprio, e por fim os
processos relativos a normas designadamente normas contidas em regulamentos (artigos
72 e seguintes).
Duas notas importantes quanto à Acção Administrativa Especial. Primeira nota é a de
que o legislador optou, e parece-me muitíssimo bem, por criar uma categoria
desenvolvida de processos principais urgentes. Tradicionalmente, isso não é regra válida
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erga omnes, mas tradicionalmente a urgência era agregada às providências cautelares.
Sempre houve, todavia, aqui e ali, processos principais com natureza urgente,
designadamente, ainda recentemente, no âmbito do contencioso pré-contratual, os
recursos contenciosos que seguiam o regime do DL n.º 134/98 eram processos
principais e urgentes. Pois bem, no âmbito da Reforma o leque de processos principais
urgentes, ou seja, de processos que valem por si independentemente de outros, foi
significativamente alargado e um desses alargamentos é bastante significativo, é o
alargamento referente ao contencioso pré-contratual, dos artigos 100 e seguintes. Ou
seja, o contencioso que diz respeito a litígios que se suscitam na fase de formação de
alguns contratos, o contencioso pré-contratual passa a ter um regime uniforme, principal
e urgente. Agora reparem que isto não vale por tudo. O que é que diz o artigo 100.º? O
artigo 100.º, n.º 1 diz o seguinte: a impugnação de actos administrativos relativos à
formação de contratos de empreitada e concessão de obras públicas, prestação de
serviços e de fornecimento de bens, rege-se pelo disposto na presente secção e
subsidiariamente pelo disposto noutras normas também. Portanto, o legislador resolveu
colar este regime de especial urgência, apenas a quatro tipos contratuais, ou melhor,
apenas a procedimentos preparatórios de quatro tipos contratuais: empreitadas de obras
públicas, concessão de obras públicas, prestação de serviços e fornecimento de bens.
Esta opção não é seguramente fruto do acaso, embora na minha perspectiva não seja a
mais feliz, esta questão foi amplamente debatida na fase de elaboração dos diplomas,
esta opção resulta da circunstância do Direito Comunitário estar focado
fundamentalmente nestes quatro tipos contratuais. É fundamentalmente por exigências
do Direito Comunitário que se cria um regime especialmente urgente para o contencioso
pré-contratual e esse regime especialmente urgente é circunscrito a estes quatro tipos
contratuais, porque são os quatro tipos contratuais com os quais o Direito Comunitário
se preocupa.. Há aqui na minha perspectiva um erro de facto do legislador, com todo o
respeito, quer pelo legislador em abstracto quer pelo autor material ou autores do
diploma, é que o Direito Comunitário está crescentemente preocupado com um quinto
tipo contratual, que são as concessões de serviço público, que se distinguem das
concessões de obras públicas, e que são contratos com elevadíssima expressão
financeira, portanto as concessões de serviço público, pelo menos, deveriam estar aqui.
Por outro lado, uma outra nota, o legislador ordinário para além de seguir o indirizzo
comunitário, poderia ter prestado alguma atenção adicional neste aspecto às próprias
directrizes constitucionais. Não me parece que seja totalmente conforme com a
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Constituição circunscrever um regime especialmente urgente a estes quatro tipos
contratuais, deixando de fora tipos que são importantes em termos económicos, em
termos de necessidade de tutelas de particulares. Apenas para terem uma noção, a
contratação pública das concessões de serviços públicos, das concessões de obras
públicas, das empreitadas, das prestações de serviços e também do fornecimento de
bens, representa 18% do Produto Interno Comunitário. Nós olhamos para os 15 países
que actualmente compõem a União Europeia, para o ano mais 10, e quando olhamos
para economia conjunta da União Europeia, cerca de 18% do PIB comunitário é
representado por actividade pré-contratual da Administração. É um domínio de extrema
importância e de extrema sensibilidade na óptica do Direito Comunitário e, portanto,
prestando o Direito Comunitário crescente atenção às concessões de serviço público, eu
penso que teria sido ocasião de reflectir isso na Reforma. Porque, se não for reflectido
agora, vai ter de ser mais tarde, é uma questão de tempo, o que não é drama: a Reforma
já foi alterada duas vezes antes de entrar em vigor, portanto não fará mal se for alterada
depois de entrar em vigor.
Outra nota quanto ao processo administrativo, respeitante agora as providências
cautelares: nos artigos 112.º e seguintes nós encontramos uma série de disposições de
muitíssima importância quanto às providências cautelares. Eu diria, no que respeita à
tutela dos particulares e à própria lógica do contencioso administrativo, o domínio das
providências cautelares foi daqueles em que se deu um passo de gigante, um passo
muito significativo, em frente e no bom sentido. Primeira ideia: que ficou clara na
Reforma, um princípio de atípicidade

e não especificação das providências cautelares.
Não que a jurisprudência, pontualmente, não viesse admitindo já providências
cautelares não justificadas. Quer o Tribunal Central Administrativo, quer o Supremo
Tribunal Administrativo, sobretudo a partir de 97/98, passaram a admitir, aqui e ali,
providências cautelares não especificadas no contencioso administrativo mas, repito,
pontualmente para casos apontados, bastante marcados na jurisprudência. Pois bem,
doravante resulta com toda a clareza nos artigos 112.º e seguintes, que a regra é
precisamente a da atípicidade e não especificação, que é no fundo a regra do Código do
Processo Civil também, sem prejuízo da existência de providências cautelares
especificadas e típicas, que devem ser usadas preferencialmente quando se puderem
verificar os respectivos pressupostos. Aqui o legislador quis ser pedagógico porque,
depois de dizer que as providências cautelares são atípicas e não especificadas, e
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portanto podem ser aquelas que se revelaram adequadas, elencou uma série de exemplos
no artigo 112.º, n.º 2. Resulta destes exemplos a preocupação pedagógica de explicar a
quem trabalha com esta matéria que há uma série de providências que foram quase
recorrentemente negadas pela jurisprudência, e pela doutrina também, e que passam a
ser admitidas, designadamente: i) a suspensão da eficácia de normas; há acórdãos
pontuais do Supremo Tribunal Administrativo, quer na secção de contencioso
administrativo, quer na secção de contencioso tributário, onde se admite a suspensão de
eficácia de normas, e há também sentenças nesse sentido dos tribunais inferiores, mas
eram casos pontuais. Doravante ela passa a ser admitida com âmbito geral. ii) Para além
disso, intimações dirigidas à Administração; o actual processo de intimação para um
comportamento, tal como configurado na actual Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos (LPTA), é um processo dirigido contra particulares ou concessionários
que violem normas de direito administrativo; passa a admitir-se esse mesmo processo,
esse mesmo tipo de intimação, contra a Administração.
Por fim uma vez que o tempo se vai esgotando, queria só chamar a vossa atenção para o
artigo 120.º, artigo que por si só poderia ocupar os trinta minutos que me foram dados.
Direi apenas que houve uma preocupação no artigo 120.º de dar a entender ao decisor
jurisdicional que, para efeito de outorga ou não de uma providência cautelar, há que
efectuar um juízo de proporcionalidade, portanto há que ponderar o benefício que o
particular obtém com o deferimento da sua pretensão à luz do prejuízo que o interesse
público tem com esse mesmo deferimento. Portanto, regra geral a regra é a da
ponderação de acordo com o princípio da proporcionalidade e é, na sequência dessa
ponderação, que se dá ou não se dá a providência cautelar. Com uma pequena excepção,
que é a da alínea a), do n.º 1 do artigo 120.º: quando, de acordo com o mecanismo então
previsto no artigo, e que eu agora não vou desenvolver, o juiz entender que a pretensão
a formular no processo principal for evidentemente procedente, porque importa não
esquecer que a providência cautelar é acessória do processo principal, então também a
providência cautelar deve proceder com dispensa substancial do tal juízo de
proporcionalidade que há pouco vos referi. O juízo de proporcionalidade não deve
nunca ser totalmente dispensado mas aqui é em larga medida dispensado.
Ora bem o tempo escasseia e como escasseia eu vou saltar aqui uma série de outras
inovações e vou só focar-vos mais três que me parecem importantes.
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A primeira é de que no campo, seja da Acção Administrativa Comum, seja da Acção
Administrativa Especial, a legitimidade passiva, ou seja, a legitimidade do recorrido,
quando se trate do Estado, passa a caber em todos os processos, ou em quase todos os
processos, ou à pessoa colectiva pública - município, instituto público - ou ao
ministério onde se insere o órgão que praticou o acto que é impugnado. Isto é
importante a vários títulos. Tem importância, nomeadamente, para quem é advogado,
pois isto vem aumentar significativamente o leque de conflitos de interesses
possíveis.Actualmente, embora não seja bonito, é possível um advogado representar,
por exemplo, um Secretário de Estado num determinado processo e representar um
recorrido contra outro Secretário de Estado do mesmo Ministério em processo diferente.
Doravante, isso deixa de ser possível porque a legitimidade passiva passa a ser do
Ministério. Portanto, para quem é advogado, esta norma não é inócua, o leque de
conflitos de interesses fica claramente alargado.
Penúltima nota, a Reforma passa a admitir com grande amplitude a cumulação de
pedidos. A cumulação de pedidos actualmente é admissível apenas em casos contados e
com extraordinárias limitações. Doravante, quer por virtude do artigo 4.º, quer por
virtude do artigo 47.º, a cumulabilidade de pedidos passa a ser genericamente
admissível. Isto significa que passamos a poder, por exemplo, pedir a anulação de um
acto e a consequente responsabilidade civil da entidade pública a que esse acto é
imputável; passamos a poder pedir a anulação do acto e a consequente anulação do
contrato subsequente a esse acto. O leque de possibilidades de acumulação é muito
significativo, e consta do artigo 4.º, e vem, obviamente, contribuir para alguma
celeridade, pelo menos aparentemente, na administração da Justiça. O que é que se
passa actualmente se eu quiser impugnar um acto de adjudicação e a seguir atacar o
contrato? Bom, o que se passa é que não posso atacar o contrato, em primeiro lugar
porque se não for parte dele não o posso impugnar; mas se fosse, eu tinha de impugnar
o acto administrativo e só depois de obter a respectiva anulação é que atacaria o
contrato consequente. Agora posso fazer tudo no mesmo processo, e o mesmo vale para
a responsabilidade civil.
Última nota, importante: sedimentou-se um principio de igualdade de armas entre
particular e a Administração, e este principio de igualdade de armas transparece
claramente de duas ideias, que são focadas em todas as conferências sobre este assunto,
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portanto não vos estarei a dar novidade nenhuma. A primeira é que a Administração
passa a pagar custas como os outros. Até aqui a Administração estava isenta de custas
na generalidade dos processos. Pois bem, passa a pagar custas se decair (artigo 189.º,
n.º1). Segunda novidade é que a Administração passa a poder ser condenada por
litigância de má fé (artigo 6.º), o que não é irrelevante. Estas duas notas combinadas, ou
seja a susceptibilidade de pagar custas e de ser condenada por litigância de má fé, talvez
contribua, não sei se estarei a ser demasiado optimista, para alguma diminuição da
litigiosidade e sobretudo dos recursos. A tendência geral da Administração quando
perde em primeira instância é para recorrer, mesmo quando objectivamente não tem ou
tem muito pouca razão, e recorre porquê? Porque: a) não paga custas; b) mesmo que
esteja a litigar contra Lei expressa, não pode ser condenada por litigância de má fé.
Portanto, pouco tem a perder se recorrer, tudo tem a ganhar. Daí que seja razoável
esperar que deste princípio da igualdade de armas decorra alguma diminuição da
litigiosidade, sobretudo em fase de recurso.
Muito mais havia para dizer, mas o tempo esgotou-se, e portanto ficarei por aqui,
agradeço a vossa paciência e a vossa atenção, e pergunto se têm dúvidas, algum
esclarecimento que queiram formular.

(fonte: http://www.dgpj.mj.pt/sections/informacao-e-eventos/anexos/sections/informacao-e-eventos/anexos/dr-bernardo-diniz-de/downloadFile/file/BDA.pdf?nocache=1210675054.63)

Renata Espadinha
Aluna 17650

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