segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Portugal: o Contencioso Administrativo numa evolução sui generis

Em resposta à primeira tarefa proposta

Perante o faseamento tripartido da evolução do Contencioso Administrativo, proposto pelo Professor Vasco Pereira da Silva, em O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise (2ª Edição Actualizada, Coimbra, Almedina, 2009), resulta desde logo evidente que a referida tripartição, em fases, do Estado Liberal ao Estado Pós-Social, não encontra exemplo em Portugal. Defende o Professor que, quanto ao nosso país, a fase do “baptismo” coincide com a fase da “confirmação” ou “crisma”. Perante tão pouco ortodoxo percurso, cabe-nos averiguar por onde terão então andado os “pergaminhos católicos” que a Nação nunca se cansou de apregoar.

A Revolução Francesa inicia, em 1789, aquele a que se viria mais tarde a chamar o Direito Administrativo. O modelo é importado com o triunfo do Liberalismo em Portugal, e vigorará desde 1832, no contexto das reformas de Mouzinho da Silveira.
Por essas alturas, este era ainda um “Direito da Administração”, em que esta, voltada para si mesma, não concedia a outros a faculdade de a julgar: “julgar era ainda administrar”, pelo que o juiz seria necessariamente um administrador-juiz.
Entre 1832 e 1933, altura em que a maioria dos países europeus já tinha assistido ao “baptismo” do Direito Administrativo, Portugal vive um período de hesitações no contencioso administrativo, entre a atribuição da resolução de litígios a órgãos administrativos especiais e a sua atribuição a tribunais comuns. Por curtos períodos, entre 1835 e 1842, e mais tarde entre 1892 e 1896, o contencioso administrativo em 1ª instância esteve a cargo dos tribunais judiciais[1].
Nesses tempos de Parlamentarismo, reinará o acto administrativo, figura central do direito administrativo, tipicamente ordem, proibição, autorização, concessão ou sanção, exemplos da unilateralidade de uma Administração agressiva. E o contencioso administrativo espelhará o acto, na figura processual do “recurso de anulação”. Pressupondo a intervenção do Tribunal a existência prévia de reclamação graciosa, esse “recurso directo de anulação”, configura-se afinal como uma segunda instância de recurso[2], à disposição do particular lesado, limitando-se os poderes do juiz à mera anulação do acto recorrido.
O acto “objectivo, formal e impessoal” dispensa, nesta equação, quaisquer direitos subjectivos. A Administração encontrava-se vinculada a um Princípio rígido de Legalidade, e isso bastava-lhe. Desvalorizava-se a protecção jurídica concedida pelos Tribunais, perante a protecção oferecida por via legislativa[3]. Aliás, no recurso contencioso contemplam-se apenas questões de legalidade, de tal forma que “o acto recorrido (…) será mantido se estiver conforme com a lei, será anulado se houver sido praticado contra a lei”[4].
É um mero poder dos particulares, o de exigir dos órgãos da Administração a observância estrita dos preceitos legais que a vinculam. Não sendo titulares de direitos perante a Administração, actuam para defesa da legalidade e do interesse público. Marcello Caetano defenderá que o direito subjectivo público é aquele que é confiado à pessoa para prosseguir interesses que sejam também do Estado[5]. Desta forma, é fácil compreender que “não há um litígio entre pessoas, (…) mas o simples pedido de revisão jurisdicional de um acto arguido de ofensivo da lei”[6].
Mas o cidadão que, para defesa da legalidade, recorresse a um Tribunal administrativo, não estaria sempre seguro da execução efectiva de sentença que condenasse a Administração: previa-se um vasto leque de causas legítimas de inexecução, como um juízo de inconveniência, por parte do Governo, sempre que envolvesse o pagamento de quantia certa. O dever de executar as sentenças não estava ainda sujeito a qualquer prazo e não se previa qualquer indemnização, a título de responsabilidade civil pela inexecução ilícita de sentenças.[7]

A partir de finais do século XIX / inícios do século XX, o Estado-Social implicará uma viragem no Direito Administrativo e logo no Contencioso Administrativo. A fase do “baptismo”, em que se expurgam os pecados da concepção não imaculada, encontrará maturidade no segundo pós-guerra, com o Estado Previdência.
É a plena jurisdicionalização do contencioso administrativo. O Direito administrativo passa a ser o direito regulador das relações jurídicas administrativas, justificadas por uma Administração prestadora com quem os particulares estabelecem relações jurídicas duradouras, e a quem ela reconhece plenamente direito subjectivos. Liberto da anterior visão excessivamente formalista, o Princípio da Legalidade é fundamento, critério e limite à actuação da Administração.
Mas Portugal não celebrará esta Primavera. Marcello Caetano ignora a “revolução coperniciana” e mantém o acto no centro do Direito e do Contencioso administrativos, escrevendo “o contencioso de anulação (…) é, aliás, o contencioso administrativo por definição”[8].
Entre 1933 e 1976 mantém-se a justiça delegada, a opção meio-jurisdicional, meio-administrativa de que se falava a propósito da 1ª fase do Contencioso Administrativo[9]. Repare-se que ainda em 1983 se publica que os Tribunais Comuns do contencioso administrativo se denominavam Auditorias (uma em Lisboa, outra no Porto), e que estas são tribunais singulares, em que funciona como juiz um Auditor administrativo, junto do qual exerce funções um agente do MP”[10]. Independente, mas “pertence ao Poder administrativo”[11]. Ou não tão independente assim.

Será então facto assente que a “longa noite” da Ditadura não deixou de projectar a sua sombra sobre todo o Direito Administrativo. Mas será verdade que Portugal se baptismou (e logo confirmou) quando os outros países confirmaram a sua profissão de fé[12]? A Revolução de 74 e a Constituição de 1976 são apontadas como os grandes marcos que assinalam a alteração substancial[13].

A terceira fase começou, portanto, com o advento do Estado Pós-Social, em que se afirmam, sem qualquer receio de errar, a natureza plenamente jurisidicionalizada (e logo, independente) e a dimensão subjectiva do contencioso. A protecção concedida aos particulares nunca foi tão extensa ou perfeita, e os meios processuais ao dispor dos administrados acompanham a tendência.
Mas Portugal, apesar dos enormes avanços da CRP 1976, parecia pouco convicto.
Seria preciso, por exemplo, esperar pela revisão Constitucional de 1989 para que os Tribunais administrativos fossem claramente uma jurisdição autónoma dentro do poder judicial. E se em 1977 se impôs, em termos genéricos, o dever de fundamentar, em 1986 eram “ainda muito frequentes os casos em que a Administração pública não fundamenta as suas decisões[14]”. Já se ia na década de 80 quando alguns actos que eram até então material mas não formalmente administrativos (actos do Presidente da República e da Mesa da Assembleia da República, por exemplo) passam a ser passíveis de recurso de anulação; e ainda se exige a reclamação prévia necessária como condição de interposição de todo e qualquer recurso contencioso.[15]
Seria preciso esperar quase dez anos para que o recurso de anulação se tornasse um verdadeiro processo de partes, em que particular e Administração possuem igual possibilidade de intervir no processo e para que se abrisse a possibilidade de impugnação contenciosa de regulamentos administrativos. Só em 1996 é criada a instância intermédia que é o Tribunal Central Administrativo.
A revolução constitucional de 1997 traria finalmente a protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares a quem é garantida plena jurisdicionalização, independentemente dos meios processuais ou tutelas em causa. A partir daqui, e pelo menos na letra da Lei Constitucional, são os diferentes meios processuais que giram à volta do princípio da tutela dos direitos.
Perante um movimento (europeu) geral de Constitucionalização, traduzido na consagração constitucional de um modelo de contencioso realizado por verdadeiros tribunais e destinado a garantir a protecção íntegra e efectiva dos direitos dos particulares, e de Europeização, em que se observa uma convergência crescente das legislações nacionais dentro da Comunidade e o surgimento de fontes europeias relevantes em matéria de contencioso[16], Portugal só formalmente se enquadraria nesta fase. Ao défice de constitucionalização, porque se estava ainda longe da plena jurisdicionalização e tudo continuava a girar em volta do clássico recurso de anulação, com a tutela cautelar quase só limitada à suspensão da eficácia do acto, teria de se somar o défice de europeização[17].
Seria preciso esperar pela Reforma do Contencioso, que só entrou em vigor em 2004, para que finalmente a letra da lei (até da Lei Fundamental…) encontrasse total concretização no modelo de justiça administrativa.

O Liberalismo terá chegado a Portugal cerca de 40 anos atrasado; a Ditadura impediu, durante 60 anos, o passo seguinte na evolução do Contencioso Administrativo. Mas o que poderá justificar que fossem precisos quase mais 30 anos para que se cumprissem as promessas que Abril trouxe; ou esperar quase mais 20 anos para que se apanhasse o “comboio europeu”?
Será Fado?





[1] Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol II, 9ª edição, 2ª Reimpressão, Coimbra, Almedina, 1983, pág. 1279
[2] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição Actualizada, Coimbra, Almedina, 2009, pág. 29
[3] Idem, ibidem, pág. 31
[4] Caetano, Marcello, op cit, páginas 1326-1327.
[5] Citado por Silva, Vasco Pereira da, op cit, pág. 35 nota 89
[6] Caetano, Marcello, op cit, pág. 1327
[7] Amaral, Diogo Freitas do, “A evolução do Direito Administrativo em Portugal nos últimos dez anos”, in Contencioso Administrativo, Braga, Livraria Cruz, 1986, pág. 15
[8] Caetano, Marcello, op cit, pág. 1285
[9] Silva, Vasco Pereira da, op cit, pág. 44
[10] Caetano, Marcello, op cit, pág. 1283
[11] Idem, ibidem , pág. 1327.
[12] Silva, Vasco Pereira da, op cit, pág. 182
[13] Idem, ibidem, pág. 100
[14] Amaral, Diogo Freitas do, “A evolução do Direito…” op cit, pág. 8
[15] Idem, ibidem, pág
[16] Vide, sobre o tema, Silva, Vasco Pereira da, op cit, páginas 87 e ss. e 106 e ss.
[17] Vide, sobre o tema, Silva, Vasco Pereira da, op cit, páginas 87 e ss. e 106 e ss.

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