segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Sob o Domínio da Legitimidade

A legitimidade não é um termo que nos seja estranho, já ouvimos falar dele em Processo Civil, e agora é-nos abordado em Contencioso Administrativo, nos artigos 9º e 10º do CPTA. Também aqui, a legitimidade (tal como em Processo Civil) é estabelecida em função da relação material controvertida.

Contudo, a questão de legitimidade, não é, desde os seus primórdios, como se afigura hoje. Foi alvo de várias modificações ou Reformas, tal como outras matérias abordadas nesta disciplina.

Assim, tudo começou com o modelo francês, onde se demonstrava uma lógica clássica, segundo a qual o Contencioso Administrativo era do tipo objectivo, ou seja, era um “processo ao acto”, consistia na mera verificação da legalidade da actuação administrativa, como refere o nosso Regente, o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, na sua obra “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”. Todo o processo primava pelo acto administrativo. Significava isto que o particular nunca participava no processo para defender o seu próprio interesse. A sua presença era sempre suscitada a propósito de colaborar com o Tribunal na defesa da legalidade e do interesse público. Aliás, o mesmo se verificava em relação à Administração, que estava presente como “autoridade recorrida”, auxiliando esta também, o Tribunal. Tudo isto, no fundo, resultava da “promiscuidade entre a Administração e a Justiça”, pois tanto o tribunal como a Administração prosseguiam o mesmo fim, integrando-se ambos no poder do Estado. “O interesse da Administração é o mesmo que o tribunal, está interessado no cumprimento preciso, inteligente, adequado, oportuno da lei”, in “Princípios Fundamentais do Direito Administrativo”, de Marcelo Caetano.

Esta promiscuidade de que padecia esta relação foi afastada pela nossa Constituição de 1976 e mais preponderantemente, pela Reforma de 1984/1985. Através da jurisdicionalização do Contencioso Administrativo, obteve-se uma lógica subjectivista, segundo a qual o Particular e a Administração são partes no processo, ambos defendem as suas posições individualmente consideradas perante um juiz, que é terceiro nessa relação jurídica administrativa. Além disso, é ainda de considerar que se consagra, neste crescimento do Contencioso Administrativo, uma igualdade entre a Administração e o Particular (artigo 6º CPTA). A relação entre estes dois protagonistas não é mais uma relação de poder, por isso exista uma igualdade efectiva destes, na participação processual. Consagra-se enfim, uma ideia de processo administrativo de partes.

É precisamente esta ideia que está subjacente às regras gerais da legitimidade (artigos 9º e seguintes do CPTA). De referir que a opção de, na Parte Geral do Código, criar um regime geral no que concerne à legitimidade, é ela também, uma opção inovadora.

Estamos em condições de referir então, que a legitimidade é o pressuposto processual pelo qual a lei selecciona os sujeitos de cada lide judicial, e devendo ser aferido nos termos em que o autor delineou o respectivo interesse directo e pessoal em impugnar o acto, a sua ocorrência é independente da existência real dos factos constitutivos do interesse processual.

Destarte, o artigo 9º/nº1, refere-se à matéria de legitimidade activa, contudo esta não é estabelecida apenas neste preceito, sendo também abordada nos artigos 40º, quanto à legitimidade em acções relativas a contratos, e nos artigos 55º, 57º, 68º e 73º, no que concerne aos objectivos pretendidos pela acção administrativa especial.

Desta feita, quanto à legitimidade activa, a lei atribui-a, em regra, àquele que alegue ser uma parte numa relação material controvertida, (artigo 9º CPTA), ou seja, basta a alegação da titularidade do direito, uma vez que saber se ele é ou não titular do direito é algo que se vai saber já no próprio processo.

Já a legitimidade passiva, esta irá ser aferida em função de contra quem deverá ser proposta a acção, (art.10º CPTA). Logo, podemos dizer que será o autor, em função do seu pedido, que conformará a relação jurisdicional administrativa.

Tem que haver assim, uma ligação entre a relação material/ substantiva e a relação processual/adjectiva.

Portanto, no que respeita à legitimidade activa, devemos analisar o artigo 55º do CPTA, que aborda este pressuposto relativamente à acção administrativa especial. Assim, prevê este preceito, que tem legitimidade para impugnar um acto administrativo quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal (nomeadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos); O Ministério Público; As pessoas colectivas públicas e privadas, quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra defender; Os órgãos administrativos, relativamente a actos praticados por outros órgãos da mesma pessoa colectiva; Presidentes de órgãos colegiais, em relação a actos praticados pelo respectivo órgão, bem como outras autoridades, em defesa da legalidade administrativa, nos casos previstos na lei e as pessoas e entidades mencionadas no artigo 9º/nº2. É curioso, que no fundo este preceito acaba por legitimar oito categorias diferentes de pessoas e entidades, a impugnar actos administrativos, solicitando a sua nulidade ou anulabilidade conforme os casos.

Nesta disposição em análise cabe uma questão de veras importante: O que poderá ser um interesse directo e pessoal?

Ora, o recorrente, tem que demonstrar que tem um interesse na anulação ou declaração de nulidade do acto, isto é, tem que evidenciar que da procedência do seu pedido resulta uma utilidade ou vantagem. Tem então de ser um interesse directo e pessoal.

Será um interesse directo, quando o interesse seja actual e não meramente eventual, porque a anulação do acto em causa deve ter como fundamento a satisfação imediata do reclamante e não uma satisfação longínqua.

Entende-se por pessoal, o interesse que não se confunda com o interesse inerente a uma acção popular, deve ser uma situação do particular e apenas dele, em face do acto que este is na esfera jurídica do autor, de modo que a anulação ou a declaração de nulidade desse acto

Contudo este entendimento não é pacífico, ficando a Doutrina dividida neste ponto.

Para o Professor Vieira de Andrade, a “acção particular” prevista no art. 55º/ nº1 al. a), pode ser intentada por quem alegue ser titular de um potencial benefício, isto é, quem retirar imediatamente da anulação ou declaração de nulidade um qualquer benefício específico para a sua esfera jurídica.

Devido á última Reforma do Contencioso Administrativo, deixou de se exigir que o interesse seja “legítimo”. Tal mudança teve como principal objectivo acentuar a ideia de que basta um interesse de facto para que o particular possa intentar a acção pretendida e, não se exigindo sequer a titularidade por aquele, de um interesse legalmente protegido. Para o autor, é titular de um interesse directo quem retire de forma imediata um qualquer benefício da acção, e detém um interesse pessoal, quem retire esse benefício para a sua esfera jurídica mesmo que não invoque a titularidade de uma posição jurídica subjectiva lesada.

Neste mesmo sentido, também o Professor Mário Aroso de Almeida afirma que a “legitimidade individual para impugnar actos administrativos não tem de basear-se na ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido, mas basta a circunstância de o acto estar a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, de modo que a anulação ou a declaração de nulidade desse acto traz-lhe, pessoalmente, uma vantagem imediata”.

Em sentido diverso, o nosso Professor, Vasco Pereira da Silva, que refere que o que está em causa neste artigo, é o exercício do direito de acção por privados que, defendem os seus interesses próprios, mediante a alegação de uma “titularidade de posições subjectivas de vantagem”, em face da Administração Pública.

Assim, o interesse “pessoal e directo” corresponde ao direito subjectivo em sentido amplo, rejeitando o Professor, a distinção tradicional tripartida que separa direitos subjectivos em sentido restrito, interesses legítimos e interesses difusos, ou os denominados direitos de 1ª, 2ª e 3ªcategoria.

Quando a norma do art. 55º CPTA refere “interesses directos e pessoais” tal significa que gozam da acção para a defesa de interesses próprios todos os indivíduos que demonstrem ser titulares de uma posição jurídica de vantagem, ou sejam parte na relação material controvertida. Isto será assim, porque o carácter pessoal e legítimo do interesse é uma mera decorrência lógica do direito subjectivo que o particular faz valer no processo.

O interesse é pessoal, porque o particular alega ser titular de um direito que se encontra na sua esfera jurídica e que foi lesado por uma conduta ilegal da Administração, e é legítimo porque esse direito lhe foi conferido pela lei, através de uma norma atributiva de um direito, ou através de uma imposição, em seu benefício, de um dever à Administração.

Estas duas posições doutrinárias, levam a uma resolução distinta:

De um lado, a posição defendida pelos Professores Vieira de Andrade e Mário Aroso de Almeida traduz uma concepção mais ampla de legitimidade activa processual, sendo notada pelo interesse directo e pessoal dos particulares, podendo consistir num direito subjectivo, num interesse legalmente protegido ou numa potencial vantagem aquando da procedência da acção. Esta tese, possibilitaria em princípio, uma maior protecção dos particulares contra a actividade administrativa, contudo também poderia por em causa o próprio fim da “acção popular”, ou seja, transformaria o contencioso dos particulares numa gigantesca “acção popular”.

Por outro lado, a posição defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva, leva-nos a uma legitimidade processual mais restrita, limitada, pois apenas a possuem aqueles que sejam titulares de posições subjectivas de vantagem em face da Administração, ou que sejam partes na relação material controvertida.

No que respeita ao nº2 do artigo 9º do CPTA, este faz uma extensão da legitimidade processual. Extensão esta, que é feita para quem não alegue ser parte numa relação material que se proponha submeter à apreciação do tribunal administrativo. Este preceito reconhece desta forma, ao Ministério Público, às autarquias locais, às associações e fundações defensoras dos interesses em causa e, em geral, a qualquer pessoa singular, enquanto membro da comunidade, para defesa dos valores que enuncia. Mas tal extensão só é possível “nos termos da lei”, ou seja, esta extensão importa uma remissão para outra lei, que é a Lei 83/95 de 31 de Agosto).

Esta lei, vem aumentar o critério da legitimidade (seus artigos 2º e 3º) e estabelecer todo um conjunto de normais relativamente ao procedimento (artigo 13º do referido diploma). Esta extensão reconhecida no art.9º/nº2 e posteriormente na Lei 83/95, reconhece o direito de lançar mão de todo e qualquer meio processual, existente no Contencioso Administrativo, para defesa dos valores enunciados por cada uma daquelas entidades. Deduz-se assim que os poderes de propositura e intervenção processual da referida norma, têm que ser exercidos observando as regras especiais de tramitação resultantes da lei mencionada anteriormente, para além das suas próprias regras, pois a relação entre o art. 9º/nº2 e a lei 83/95, representa o facto de no artigo 9º se dar ao interessado o fundamento para a acção, enquanto a lei mencionada estabelece as regras especiais a aplicar na tramitação de qualquer um daqueles processos.

A legitimidade activa não se compadece apenas com o art. 9º CPTA, mas também pelo art. 40º do mesmo Código. Esta norma é em tudo especial, pois acaba por afastar o conteúdo regra do artigo 9º/nº1. Também aqui é de se verificar que presenciamos uma extensão da legitimidade processual, contudo, esta relativamente a contratos, que para além dos contraentes (das partes na relação contratual) engloba agora também, após a Reforma do Contencioso Administrativo, as partes que não aleguem ser partes na relação material que se propõe submeter aos Tribunais Administrativos. Ainda antes da Reforma, o Contencioso Administrativo apenas permitia que tais acções fossem propostas pelas partes que contratavam. No entanto, tal solução acarretava vários inconvenientes, pois excluía a possibilidade de “terceiros” à relação contratual, ou seja, os interessados sem legitimidade porem em causa os contratos celebrados. Desta forma, este artigo configurou-se como uma solução para este problema, procedendo a um aumento da legitimidade, alargando a mesma no que toca a acções de invalidade e execução de contratos (art. 40º/ nº1 e nº2).

Em suma, este pressuposto processual assegura que, nesta disciplina de Contencioso Administrativo, haja uma tutela efectiva, a quem quer que se lhe dirija, pois não apenas os indivíduos em defesa dos seus direitos e interesses, mas também outros sujeitos que de alguma forma se vêm afectados pela prática ou não de um acto administrativo, estão legitimados a agir.

Pretendeu demonstrar-se sucintamente, como estamos perante um processo de partes, de um lado o Particular, de outro a Administração, ambos perante um terceiro, o Juiz.

Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de,” O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Lisboa: Almedina, 2007.

ANDRADE, José Carlos Vieira de, “A Justiça Administrativa”, Lisboa: Almedina, 2009.

CAETANO, Marcello, “Princípios Fundamentais do Direito Administrativo”, Lisboa: Almedina, 2003.

SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Lisboa: Almedina, 2009.

A aluna,

Selénia Rosa, nº 15669.

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