segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Legitimidade e interesse processual

O pressuposto da legitimidade não se confunde com o do interesse processual ou interesse em agir. Pode não haver dúvida quanto à questão de saber se quem está em juízo é parte na relação material, tal como o autor a configurou, e no entanto poder questionar-se a existência de uma necessidade efectiva de tutela judiciária e, de factos objectivos que tornem necessário o recurso à via judicial. EX: abertura de um procedimento disciplinar, embora o arguido seja interessado, e por isso tenha legitimidade para figurar como parte no procedimento, a verdade é que em princípio, ele não tem interesse processual em impugnar o acto, na medida em que se trata de um acto contra o qual ele ainda não tem necessidade de tutela que justifique o recurso à via judicial. Tradicionalmente, o requisito do interesse processual, no contencioso administrativo, sempre revelou dificuldades quer na impugnação de actos administrativos para o efeito de se aferir da actualidade do interesse dos recorrentes particulares, em termos de saber se os recursos contenciosos eram interpostos contra actos administrativos eficazes, que lhes infligissem lesões efectivas, que não apenas potenciais ou hipotéticas, e uma vez esgotadas as eventuais vias de impugnação administrativa necessária, sobre os termos em que a questão se passa a colocar nestes diferentes domínios.

Com a reforma do contencioso administrativo, o interesse processual ganha mais relevância. Desde logo, pelo facto de o novo sistema colocar à disposição dos eventuais interessados um conjunto de novas vias de acesso à justiça administrativa que não têm carácter impugnatório e portanto, não desempenham função reactiva. Por outro lado, a partir do momento em que passam a existir os meios processuais adequados à obtenção de certos resultados, deixa de haver interesse processual na utilização de outros meios que, do ponto de vista da efectividade da tutela e da economia processual, não se apresentem tão adequados.

O CPTA não consagra em termos gerais, o interesse em agir como um pressuposto processual, mas contém uma referência expressa a este requisito no art. 39º, a propósito das acções meramente declarativas ou de simples apreciação, que visam acorrer a lesões efectivas, resultantes da existência de situações graves de incerteza objectiva, ou a ameaças de lesão, resultantes do fundado receio da verificação de condutas lesivas num futuro próximo, determinadas por uma incorrecta avaliação da situação existente.

O CPC alemão estende este regime igualmente às acções de condenação à prática ou abstenção de condutas de futuro. Embora a letra do artigo não as contemple, AROSO DE ALMEIDA considera que também quanto a estas, nomeadamente aquelas em que esteja em causa a condenação da Administração à não emissão de actos administrativos (art. 37º/2 c), deve aplicar-se o regime do art. 39º.

Por outro lado, no art. 55º/1 a), embora misturada com a questão da legitimidade, surge uma manifestação do mesmo requisito na exigência de um carácter “directo” ao interesse individual para impugnar actos administrativos. Quando se exige que o interesse do impugnante seja directo, no sentido construído neste domínio, em que ele deve ser actual, está a fazer-se apelo à ideia de que o impugnante deve estar constituído numa situação de efectiva necessidade de tutela judiciária. Neste art. 55º/1 a) faz-se apelo a duas ideias diferentes: possui legitimidade quem alegue ser titular do direito ou interesse e o seu interesse processual radica na alegação de ter sido lesado nesse seu direito ou interesse, circunstância da qual advém o interesse directo (interesse processual) em demandar.

Coloca-se a questão de saber se as consequências que o acto sob impugnação alegadamente projecta sobre o impugnante são de molde a justificar que ele lance mão da via judicial. O CPTA não erige a eficácia dos actos administrativos como conditio sine qua non para que eles possam ser impugnados, admitindo, no art. 54º, que mesmo em relação a actos administrativos ineficazes se possam constituir situações de interesse em agir que justifiquem a impugnação. O art. 54º é um artigo sobre o interesse processual em demandar – neste caso, actos administrativos ineficazes. Tal como o art. 39º, também o art. 54º tem em vista situações em que o problema da existência de um interesse em agir se coloca com acuidade, na medida em que se pode dizer que há uma presunção de que não existe interesse directo, actual, em impugnar actos administrativos que ainda não produzem efeitos na ordem jurídica porque ainda não lesaram ninguém. No art. 54º visam-se:

· Situações de lesão efectiva, resultantes de condutas ilegítimas, destituídas de fundamento jurídico – no art. 39º, as situações de incerteza, porventura decorrentes de afirmações ilegítimas da Administração; no art. 54º/1 a), as situações de execução legítima de acto ineficaz

· Situações de ameaça de lesão, resultantes do fundado receio da verificação, num futuro próximo, de circunstâncias lesivas – no art. 39º, o receio da adopção de condutas lesivas sem que tenha sido praticado um acto administrativo; no art. 54º/1 b), o receio das consequências lesivas futuras que resultarão da produção de efeitos e eventual execução do acto (ainda) ineficaz

Coloca-se agora a questão de saber se o autor que impugna um acto administrativo procedeu à prévia impugnação desse acto perante o órgão administrativo competente, nos casos em que a lei especial faça depender o recurso à via judicial da prévia utilização de mecanismos de impugnação administrativa. O CPTA não exige ,em termos gerais, que os actos administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa. Das soluções dos arts. 51º e 59º/4 decorre a regra de que a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa. Portanto, não é necessário, para haver interesse processual no recurso à impugnação perante os tribunais administrativos, que o autor demonstre ter tentado infrutiferamente obter a remoção do acto que considera ilegal por via extrajudicial. O CPTA não tem ,no entanto, o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições que só desapareceriam mediante indicação legal expressa. Na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, todos os actos administrativos com eficácia externa podem ser, desde logo, objecto de impugnação contenciosa. As decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente estabelecido na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador. Nesses casos, a lei faz depender o reconhecimento de interesse processual ao autor (o reconhecimento da sua necessidade de tutela judiciária) da utilização das vias legalmente estabelecidas para tentar obter a resolução do litígio por via extrajudicial. Ora, se um interessado impugnar um acto administrativo perante os tribunais sem ter feito uso da impugnação administrativa necessária que ao caso a lei expressamente fazia corresponder, a sua pretensão deve ser rejeitada porque a lei não lhe reconhece o interesse processual que se deveria sustentar na demonstração de ter tentado infrutiferamente obter o resultado pretendido pela via extrajudicial legalmente estabelecida.

Dário dos Anjos, 17253

ST1



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