domingo, 5 de dezembro de 2010

Evolução histórica dos modelos francês e anglo-saxónico

Afirmar-se que o Contencioso Administrativo de hoje teve a sua origem na mudança da forma de Estado, operada pela Revolução Francesa, que pôs fim ao Antigo Regime e instituiu o Estado Liberal, não quer dizer que o seu nascimento se deveu a uma “invenção genuína” e própria dos ideais liberais.
Os revolucionários tinham razões de natureza política que fundavam a sua desconfiança em relação ao poder judicial. E isso deveu-se essencialmente, por um lado, ao facto de ter sido o poder judicial «parlamentos» a desempenhar um papel muito importante na luta contra a concentração do poder real, ao ponto de se falar na existência de um “governo dos juizes” e que levou o Antigo Regime a instituir o Concelho do Rei (juiz privativo dos actos do Rei), por outro, o facto de os juizes não serem muito abertos aos novos ideais liberais, pois estes vinham por em causa o seu “status” social e político. O receio de que os tribunais pudessem vir a constituir uma força de bloqueio à actuação da Administração que agora se encontrava sob a sua direcção, levou a que os revolucionários fizessem uma interpretação do princípio da separação de poderes, muito conveniente às suas aspirações. Uma concepção rígida do “princípio da separação de poderes” (Montesquieu), de tal forma que segundo esta, julgar a Administração era ainda administrar. E é com base na sua interpretação que vão justificar a subtracção da Administração ao poder judicial, desde logo pela proibição imposta aos juizes, «sob pena de delito, perturbar, seja de que maneira for, as operações dos corpos administrativos, nem citar perante eles os administradores os administradores em razão das respectivas funções», - artigos 7.º do Decreto de 22 de Setembro de 1789 e 13.º da Lei 16-24, de Agosto de 1790. Em 1799 são criados os tribunais administrativos , que não eram verdadeiros tribunais mas sim órgãos da Administração.
Assim o Concelho de Estado instituído pelo Estado Liberal, não foi mais do que uma criação (“clone”) inspirada Concelho do Rei, instituindo-se assim um “juiz” especial para julgar a administração (o administrador juiz). Também algumas das técnicas deste novo Contencioso Administrativo, como a conhecida técnica dos “vícios” que vigorou entre nós até à reforma de 2002, já eram utilizadas no Antigo Regime.
O Contencioso Administrativo francês foi concebido como “privilégio de foro” da Administração, que visava a defesa dos poderes públicos em detrimento da protecção dos direitos dos particulares, levando à criação de um “juiz de trazer por casa” nas palavras de NIGRO. Nos seus primeiros anos de vida (1789 a 1799), é caracterizado por uma grande confusão entre administrar e julgar e que consequentemente isentou a administração de qualquer controlo judicial.
Após esta fase inicial o Contencioso francês, até à viragem do séc. XIX para o XX, embora nunca abandonando o seu sistema do “administrador juiz” passou por fases que caracterizam a sua evolução, nomeadamente a denominada de sistema da “justiça delegada” que se estende de 1799 a 1872, marcada pela criação do Conselho de Estado e outra que vai desde 1872 até finais do séc. XIX, conhecida pelo sistema da “justiça delegada”.
Só com o surgimento do Estado Social (fins do séc. XIX, princípios do séc. XX), com a efectivação do Estado-Providência, é que se assiste à jurisdicionalização do contencioso administrativo francês. Esta alteração surge graças à mudança de paradigma do próprio Conselho de Estado que surge agora, contrariando o fim para que foi criado (proteger a Administração do controlo dos tribunais judiciais), como um verdadeiro tribunal, dirigindo a sua actuação para a defesa dos direitos dos particulares. É com esta mudança de paradigma que durante todo o século vinte se vai assistir a uma gradual mas consistente autonomização do Contencioso Administrativo, conseguida através do próprio labor da jurisprudência do Conselho Estado que também vai transformar o direito da Administração em Direito Administrativo.
Com a reforma de 1953 são criadas duas instâncias, transformando-se os Conselhos de Prefeitura em Tribunais Administrativos e em 1987 foi criada uma “instância intermédia” (Cours Administratives d`Appel). No que diz respeito ao Conselho de Estado, assiste-se à progressiva autonomização da sua Secção Contenciosa face à Secção Administrativa, que agora possui natureza de órgão autónomo integrado num poder judicial próprio, conforme reconhecido pela sentença do Conselho Constitucional de 23 de Janeiro de 1987, sentença esta, que também vem afirmar a dimensão subjectiva do Contencioso Administrativo, abandonando o modelo de contencioso objectivista que sempre o tinha caracterizado. Numa palavra a “Constitucionalização” do Contencioso Administrativo. A consagração da tutela efectiva dos direitos dos particulares.
Desde finais do século vinte até aos nossos dias vem-se assistindo a um fenómeno novo, a europeização, que vai originar reformas no Contencioso todos os Estados Membros da União Europeia. Este fenómeno fez surgir um Direito do Processo Administrativo Europeu (que decorre tanto do sistema jurídico da União Europeia, como do regime da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), de fonte legislativa e jurisprudencial e vai ditar a convergência dos sistemas de Contencioso Administrativo dentro do espaço europeu, esbatendo as diferentes matrizes que os caracterizavam.

Aos movimentos revolucionários que estiveram no cerne das lutas anti-absolutistas que eclodiram na Europa continental, nos séculos XVIII e XIX, não foram alheios os factos vividos em Inglaterra cerca de um século antes, a luta entre o Parlamento e a Coroa (a tentativa de implementar um governo absolutista era um objectivo visado pelos Stuarts) no reinado de Carlos I, na qual o Parlamento reivindicou a supremacia perante aquele, bem como o direito de criticar e responsabilizar os Conselheiros do Rei. No entanto as tendências absolutistas da Coroa inglesa só são definitivamente afastadas em 1688, com a “Glorious Revolution” de onde surge o acordo do Parlamento (Câmara alta e Câmara baixa), concretizado na “Declaração de Direitos”, que impôs condições à tomada do trono pelos “Orange”, e foi convertida em Lei em 1689, com o nome de “Bill of Rights”. O Rei passou a ficar sujeito ao Direito Comum (Common Law), tal como todos os seus súbditos, fossem eles servidores da Coroa ou particulares, militares ou civis. Ficou obrigado ao respeito pelas leis do reino, não as podendo suspender genericamente ou dispensar em casos particulares, e foi reconhecido aos seus súbditos o direito de petição. Foi a consagração do “império do direito” ou “rule of law”. Em 1701, mediante o “Acto f Settlement”, o Rei foi proibido de dar ordens aos juizes, de transferi-los ou demiti-los. Consagra-se assim no Reino Unido um sistema de administração judiciária.
É neste período de lutas pelo poder e de garantias de direitos e liberdades que Jonh Locke desenvolve a teoria de que são devidas aos homens, liberdades originárias e inalienáveis, e a teoria da divisão de poderes que Montesquieu irá desenvolver e denominar “separação de poderes”, a que deu origem à interpretação rígida feita pelos revolucionários franceses, mas que na Inglaterra não levou à criação de uma Administração tida como entidade superior que não devia sujeitar-se ao controlo do poder judicial, mas sim à separação de poderes, entendida como autonomia e independência dos poderes do Estado que se limitavam reciprocamente.
Assim, contrariamente ao que sucedeu em França, e também porque o poder judicial detinha uma vinculada independência e gozava de grande prestígio, na Inglaterra a Administração, encontrava-se submetida em toda a sua actuação à “common law”, não se lhe reconhecendo quaisquer privilégios ou prerrogativas de autoridade pública. A sujeição da Administração ao “direito comum” e aos tribunais judiciais, é uma realidade a que não se pode furtar através da invocação de imunidades ou privilégios. A administração britânica não tem um Direito próprio, a autotutela declarativa e a autotutela executiva são institutos que a sua actuação desconhece. Se um órgão da Administração tomar uma decisão desfavorável a um particular e este não a acatar voluntariamente, à Administração só lhe resta recorrer ao tribunal comum (segundo o due process of law) para obter uma sentença que torne imperativa a sua decisão. No confronto entre a Administração e os particulares, são reconhecidos a estes os seus direitos, e sempre que actuação administrativa resulte a lesão de um direito do particular, este encontra protecção no recurso aos tribunais comuns. Um modelo subjectivista associado à ideia de uma “protecção judicial plena e efectiva”.
O modelo britânico levou mesmo alguns autores a afirmar que o Direito Administrativo não era conhecido na Grã-Bretanha - DICEY.
Com o surgimento da Administração Prestadora do Estado Social (passagem da Administração Agressiva para a Administração Prestadora) vai assistir-se a uma transformação do sistema britânico. Com a intervenção dos poderes públicos na vida económica, social e cultural, surgem normas reguladoras da actividade administrativa e reconhecem-se a certas autoridades administrativas (Tribunals), poderes de autotutela e especificidades contenciosas (decidem questões de direito administrativo segundo critérios de legalidade). O reconhecimento da ineficiência dos tribunais comuns para exercerem o controlo da Administração, levou à criação de órgãos administrativos especiais (os “administrative tribunals” - destinados a exercer a função administrativa e a fiscalizar a Administração).
Com o surgimento do Direito Administrativo na Grã-Bretanha durante o séc. XX e tal como tinha acontecido em França, assistiu-se a uma relativa confusão entre as funções administrativas e as judiciais, não tanto pela criação de tribunais especiais integrados na Administração como aconteceu em França, mas sim pelas garantias administrativas que envolvem a intervenção conjugada de “órgãos administrativos especiais” (os Tibunals) com tribunais (Courts). No entanto deve salientar-se que perante esta “promiscuidade” a regra de que a última palavra deve caber a um tribunal (Court) e não a um órgão administrativo especial, sendo sempre garantido o recurso para tribunais superiores (superior courts), foi implementada pelo “Tribunals and Inquiries Act” de 1958 e1992. Nos anos setenta do séc. XX o Direito Administrativo britânico, nomeadamente o seu contencioso ganhou dimensão constitucional. Com a constitucionalização o contencioso administrativo é acompanhado por uma progressiva especialização, com a instituição do “Queen’s Bench Division” do “High Court” como tribunal especializado para o conhecimento de litígios administrativos e uma forma especial de processo para as questões administrativas (“judicial review”), um verdadeiro tribunal administrativo que embora esteja integrado numa jurisdição única é um tribunal especializado.
Mais recentemente o Direito Administrativo britânico, tal como o dos restantes membros vai ser influenciado pelo Direito Europeu, a diferença está no facto da sua tradição jurídico-administrativa nacional ser menos intensa, e por isso, mais propensa do que os Estados continentais, a receber os seus princípios. Destacam-se nesta fase o fim das tradicionais “imunidades” dos actos da Coroa e a introdução do Direito Cautelar Europeu.
Presentemente face à influência do Direito Europeu podemos dizer que a principal diferença entre estes dois sistemas reside no tipo de controlo jurisdicional da Administração. No Reino Unido esse controlo é feito por Tribunais comuns que pertencem a uma única ordem de jurisdição (unidade de jurisdição). Em França existe um controlo da Administração que é feito por tribunais especializados (Tribunais Administrativos) que se integram na ordem jurisdicional administrativa e por isso distinta da judicial, num sistema dual de jurisdições. Também na actuação da Administração a autotutela declarativa e a autotutela executiva, contrariamente ao que se passa em França, no Reino Unido ela tem caracter excepcional, sendo a autotutela executiva, praticamente inexistente.
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Bibliografia:
Prof. Vasco Pereira da Silva, in “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”- 2.ª Edição
Prof. Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, Vol. I – 3.ª Edição
Prof. Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa (Lições)”, 10.ª Edição
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José Martins
Aluno N.º17629

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