quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Relativamente à matéria da DECLARAÇÃO DE ILEGALIDADE POR OMISSÃO versada em aula teórica aqui fica um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo. É aqui tratada a omissão do dever de regulamentar; é também suscitada a legitimidade activa dos autores (ou seja, debate-se se o art.º 77/1, CPTA traz/inculca algo de novo ao conceito do art.º 9/1, CPTA, ou não). Todavia o mais relevante do acórdão, é, penso eu, a discussão em torno do conceito de prejuízo directo plasmado no art.º 77/1, CPTA.

Data do Acordão: 11-03-2010

Sumário: I - A referência a quem "alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão", constante do nº 1 do art. 77º do CPTA, deve entender-se como reportada à invocação de um interesse individual, que pode consistir numa posição jurídica substantiva ou num mero interesse de facto, devendo, em qualquer caso, tratar-se de um direito subjectivo ou de interesse de facto que derive directamente da norma, ou que seja por ela reconhecido, e que careça de regulamentação para se tornar exequível.
II - A esta luz, o prejuízo a que alude o preceito em causa reconduz-se à ofensa desse direito subjectivo ou interesse de facto, conferido ou reconhecido pela norma legal, ofensa essa consubstanciada na omissão ilegal da regulamentação que era necessária à sua exequibilidade.
III - Ao não publicar a portaria de regulamentação prevista no nº 6 do art. 195º do EMGNR, a Administração está, sem mais, e com essa omissão ilegal, a impedir os Autores, detentores de formação superior como Licenciados, de usufruírem do seu direito subjectivo, reconhecido na citada norma legal estatutária, de ingresso na categoria de oficial dos quadros da GNR, após a frequência de tirocínio de formação com aproveitamento, e no âmbito do preenchimento regular das vagas nos respectivos quadros, desfrutando consequentemente de todas as regalias inerentes a esse ingresso.
IV - A isso se reconduz, in casu, o prejuízo directamente resultante da situação de omissão, a que alude o art. 77º, nº 1 do CPTA, pelo que os Autores têm legitimidade para a acção administrativa especial de declaração de ilegalidade por omissão de regulamentação, prevista neste preceito legal.

Nº Convencional: JSTA00066340
Nº do Documento: SA1201003110819
Data de Entrada: 10-11-2008
Recorrente: A... E OUTROS
Recorrido 1: MFIN E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Votação: UNANIMIDADE


Meio Processual: REC JURISDICIONAL.
Objecto: AC TCASUL DE 2008/05/15.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática 1: DIR ADM CONT - ACÇÃO ADM ESPECIAL.
Legislação Nacional: CPTA02 ART77 ART9.
CONST76 ART268 ART283.
EMGNR93 ART195 ART213.
DL 15/2002 DE 2002/01/29 ART2.
Referência a Doutrina: AROSO DE ALMEIDA O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2ED PAG227.
VIEIRA DE ANDRADE JUSTIÇA ADMINISTRATIVA LIÇÕES 8ED PAG253.
AROSO DE ALMEIDA E OUTRO COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2ED PAG453.

Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
(Relatório)
I. A…, B…, C…, D…, E… e F…, todos militares da GNR, identificados na petição de fls. 3, intentaram no TAF de Almada, contra o MINISTÉRIO DAS FINANÇAS E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA e o MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, acção administrativa especial de declaração de ilegalidade por omissão da regulamentação prevista no nº 6 do art. 195º do Estatuto dos Militares da GNR, aprovado pelo DL nº 265/93, de 31 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 15/2002, de 29 de Janeiro.
Alegaram, em suma, que são militares da GNR com cursos superiores, e que o Estatuto dos Militares da GNR prevê, nos seus arts. 192º, 195º e 213º, a possibilidade de os sargentos e praças com formação superior ascenderem à categoria de oficiais, possibilidade que depende de tirocínio e de quadro a aprovar por Portaria das entidades ministeriais demandadas, regulamentação que não foi efectuada apesar de a referida norma estar em vigor há mais de 10 anos, pelo que pediram que as entidades demandadas fossem condenadas a aprovar a regulamentação prevista no nº 6 do art. 195º do citado Estatuto dos Militares da GNR.
Por sentença daquele Tribunal, de 25.01.2006 (fls. 161 e segs.), foi julgada procedente a excepção da ilegitimidade dos Autores, com base no disposto no art. 77º, nº 1 do CPTA, e, em consequência, absolvidos os Réus da instância.
Esta decisão veio a ser confirmada por Acórdão do TCA Sul de 15.05.2008 (fls. 236 e segs.).
Não se conformando com este acórdão, dele vem interposto pelos Autores o presente recurso de revista, nos termos do art. 150º do CPTA, em cuja alegação formulam as seguintes conclusões:
A- Os ora recorrentes têm prejuízo directo com a ausência de regulamentação da norma do Estatuto do Militar da GNR que prevê a possibilidade de os militares licenciados que frequentarem um tirocínio (curso) integrarem a classe dos oficiais.
B- A interpretação sobre o que se deve entender por "...prejuízo directamente resultante da situação de omissão..." baseia-se em doutrina e jurisprudência antiga e contemporânea do advento do Código Administrativo (1940) e do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (1957), não atendendo aos objectivos do nosso legislador ao consagrar as acções administrativas especiais de declaração de ilegalidade por omissão de regulamentação.
C- A interpretação do Tribunal recorrido sobre o que se deve entender por "...prejuízo directamente resultante da situação de omissão..." torna praticamente impossível o recurso pelos cidadãos a este tipo de garantia pois a inexistência de uma norma regulamentar não é susceptível de por si só causar prejuízo.
D- A decisão recorrida infringe a tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos consagrada nos n.ºs 4 e 5 do artigo 268.º da Constituição.
II. Contra-alegou o Ministério da Administração Interna, concluindo do seguinte modo:
I. O recurso de revista deve ser rejeitado por não se encontrarem preenchidos os pressupostos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, já que não está em causa a apreciação de qualquer questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou que a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;
II. Caso seja diverso o entendimento desse Venerando Tribunal, certo é que o Acórdão de 15 de Maio de 2008, do Tribunal Central Administrativo Sul (2.º Juízo - 1.ª Secção, Contencioso Administrativo), foi proferido em plena conformidade à lei;
III. Não se verifica o pressuposto para a declaração de ilegalidade por omissão, a que se refere o n.º 1 do artigo 77.º do CPTA: um prejuízo directamente resultante da situação de omissão;
IV. O ingresso na carreira de oficiais, por militares licenciados, obedece ao disposto nos artigos 195.º e 213.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (EM/GNR);
V. Da falta da regulamentação prevista no n.º 6 do artigo 195.º do EM/GNR não resulta um prejuízo directo para os Recorrentes, já que a aprovação dos quadros de pessoal em causa não determina directamente o ingresso na carreira de oficiais.
III. Contra-alegou igualmente o Ministério das Finanças e da Administração Pública, nos termos de fls. 307 e segs., sustentando, em suma, a falta de pressupostos de admissão do recurso, por entender que não está em causa uma “questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental”, ou que a admissão do recurso “seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, e, para a hipótese de assim se não entender, que não há qualquer prejuízo para os Autores “directamente resultante da omissão”, ou seja, da ausência da regulamentação prevista no nº 6 do art. 195º do EMGNR. *
O presente recurso de revista foi admitido pelo acórdão de fls. 321 e segs., proferido pela formação prevista no nº 5 do art. 150º do CPTA.
Os Exmos Adjuntos tiveram vista dos autos.
(Fundamentação)
OS FACTOS
O acórdão recorrido considerou assentes, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
A - Em 2004-08-27, o Instituto de Contabilidade e Administração de Lisboa emitiu certidão da qual consta que A… "... concluiu o 2º Ciclo do Curso Bietápico da Licenciatura em Contabilidade e Administração – Ramo: Administração Pública, o qual confere o grau de Licenciado...”, cfr. fls. 34 e 35 dos autos.
B - Em 2001-06-20, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, emitiu certificado, do qual consta que B…"... concluiu a 1 de Junho de 2001 a Licenciatura em Ramo de Formação Educacional em História (...)", cfr. fls. 36 e 37 dos autos.
C - A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa certificou que B… concluiu a Licenciatura em História em 1997-07-30, cfr. fls. 38 a 40 dos autos.
D - Em 2001-10-03, a Universidade Moderna emitiu certificado, do qual consta que C… concluiu a Licenciatura em Direito em 2001-09-18, cfr. fls. 41 e 41 vrs dos autos.
E - Em 2000-09-01, a Universidade Moderna emitiu certificado, do qual consta que D… concluiu a Licenciatura em Direito em 2000-09-01, cfr. fls. 42 e 42 vrs dos autos.
F - Em 2001-03-22, o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa emitiu certificado, do qual consta que E… concluiu a Licenciatura em Antropologia, em 1999-12-15, cfr. fls. 43 dos autos.
G - Em 2001-11-23, a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias emitiu certificado, do qual consta que E… concluiu o Curso de Pós-Graduação em Criminologia, no ano lectivo de 2000/2001, cfr. fls. 44 dos autos.
H - Em 1996-01-09, a CEUL – Cooperativa de Ensino Universidade Lusíada, CRL, emitiu certificado, do qual consta que F…concluiu a Licenciatura em História, em 1995-12-31, cfr. fls. 45 e 46 dos autos.
I - Em 2003-10-20, a Universidade Autónoma de Lisboa emitiu certificado, do qual consta que, F… concluiu o Curso de Especialização em Ciências Documentais, variante de Arquivo, no ano lectivo de 2001/2002, cfr. fls. 47 e 48 dos autos.
J - Em 2003-12-22, D… apresentou requerimento dirigido ao Tenente-General Comandante Geral da Guarda Nacional Republicana, com o seguinte teor:
EX.MO SENHOR TENENTE-GENERAL COMANDANTE GERAL DA GUARDA NACIONAL REPUBLICANA
REQUERIMENTO
D…o, 1.º Sargento de Infantaria, da Brigada Territorial n.º 3, colocado no Posto Territorial de Vendas Novas, Licenciado em Direito pela Universidade Moderna, vem requerer a V. Ex.ª se digne permitir a frequência do tirocínio para o ingresso na carreira de oficiais da Guarda e no respectivo Quadro Jurídico, nos termos e com os fundamentos seguintes:

Dispõe a alínea a) do n.º 2 do Art.º 51º do EMGNR aprovado pelo Decreto Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, que são condições exigidas para o ingresso na carreira de oficiais "uma licenciatura ou formação militar e técnica equiparada a bacharelato".

Prevê ainda o Art.º 192º do mesmo estatuto um quadro de Juristas ou Técnico Superior de Apoio, a ser preenchido exclusivamente pelos postos de oficiais.

Porém, resulta do disposto do Art.º 213º, conjugado com o Art.º 217°, ambos do normativo citado, que o recrutamento para oficiais dos quadros da Guarda, "é feito entre alunos que frequentaram os cursos de formação de oficiais dos quadros e, no caso dos licenciados que pertençam aos quadros da Guarda, mediante a frequência do respectivo tirocínio de formação com aproveitamento".

É condição especial de promoção ao posto de Alferes, para os licenciados admitidos por concurso, o tirocínio, Art.º 200º do EMGNR.

Contudo, o requerente supõe reunir as condições gerais de admissão ao referido tirocínio previsto no Art.º 214º do EMGNR, bastando para tal que seja aberto o respectivo concurso para o preenchimento de eventuais vagas no Quadro Jurídico, conforme decorre da alínea f) do n.º 1 da mesma norma.

Atendendo aos vários Princípios consignados no Art.º 47º do EMGNR, o requerente considera que os conhecimentos adquiridos nesta área são de relevante interesse para a Guarda, face à especificidade da Missão, ora alegada à investigação criminal.

Por conseguinte, preenchidas as condições gerais de promoção exigidas pelo Art.º 116.º do EMGNR, vem o requerente, nos termos e com os fundamentos expostos, solicitar a V.ª Ex.ª que seja admitido a frequentar um próximo tirocínio com vista ao ingresso na carreira de oficiais da Guarda e à subsequente integração no respectivo quadro..., cfr. fls. 49 a 50 dos autos.
L - Em 2004-11-17, o Ministro da Administração Interna rejeitou o recurso de C… e de F…, nos termos da informação n° 622- LM/2004, cfr. fls. 78 a 84 dos autos.
M - Em 2004-11-17, o Ministro da Administração Interna rejeitou o recurso de D…, nos termos da informação n° 626-LM/2004, cfr. fls. 104 a 108 dos autos.
N - Em 2004-12-02, D… foi notificado do despacho de 2004-11-17, cfr. fls. 80 dos autos.
O - Em 2004-12-08, C… foi notificado do despacho de 2004-11-17, cfr. fls. 80 dos autos.
P - Em 2004-12-02, F… foi notificado do despacho de 2004-11-17, cfr. fls. 88 dos autos.
Q - Em 2004-11-22, o Ministro da Administração Interna rejeitou o recurso de A… e de E…, nos termos da Informação nº 623-LM/2004, cfr. fls. 91 a 95 dos autos.
R - Em 2004-12-03, A… foi notificado do despacho de 2004-11-22, cfr. fls. 98 dos autos.
S - Em 2004-12-13, E… foi notificado do despacho de 24-11-22, cfr. fls. 100 dos autos.
T - Em 2005-05-11 deu entrada no TAF de Almada, a presente Acção Administrativa Especial, cfr. p.i. de fls. 2 e ss., e 15 a 26 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida (...).
O DIREITO
O acórdão sob revista confirmou a sentença do TAF de Almada que, no âmbito da acção administrativa especial para declaração de ilegalidade por omissão da regulamentação prevista no nº 6 do art. 195º do Estatuto dos Militares da GNR, intentada pelos ora recorrentes contra o Ministério das Finanças e da Administração Pública e o Ministério da Administração Interna, julgou procedente a excepção da ilegitimidade dos Autores, considerando prejudicado o conhecimento das demais excepções, e, em consequência, absolveu os Réus da instância.
O acórdão que admitiu o presente recurso de revista enunciou os fundamentos dessa decisão nos seguintes moldes:
“(...) o TAF de Sintra, na sua decisão, de 25-01-06, viria a absolver da instância os RR., com base na ilegitimidade dos AA, aqui Recorrentes, nos termos no nº 1, do artigo 77º do CPTA, já que, em síntese, a falta da norma que os AA pretendiam ver suprida não lhes provocaria uma prejuízo directo para a sua esfera jurídica, uma vez que existiriam “mais pressupostos aleatórios de que dependerá o objectivo dos AA.”, como seja, o processo de recrutamento e a existência de lugar em quadro que ainda faltaria aprovar, não existindo, assim, um prejuízo directo por parte dos AA., agora Recorrentes.
Tal decisão foi, posteriormente, sufragada pelo TCA Sul, por via do seu Acórdão, de 15-05-08, que, assim, manteve a pronúncia emitida pelo TAF quanto à ilegitimidade dos AA. (cfr. fls. 236-240).
Ora, em face do quadro em que se moveu o Acórdão recorrido temos que a questão a dirimir no âmbito da presente revista se apresenta como de especial relevância jurídica, por passar, designadamente, pela densificação do conceito de prejuízo “directamente resultante da situação de omissão”, a que alude o nº 1, do artigo 77º do CPTA, para efeitos de legitimidade activa dos AA, pressuposto este que, eventualmente, poderá ser apreciado por referência a parâmetros essencialmente normativos, quer os contidos no CPTA, quer os decorrentes das garantias contenciosas acolhidas no texto constitucional, portanto com um alcance que extravasa significativamente do caso concreto e poderá servir de referência interpretativa da norma em causa noutras situações, sendo que, na situação em análise, a questão a que se reportam os Recorrentes se anuncia algo complexa, envolvendo a realização de operações exegéticas de uma certa dificuldade, o que tudo reclama a intervenção deste STA.”
A questão sobre a qual este Tribunal de revista é chamado a pronunciar-se circunscreve-se, assim, à delimitação do conceito de “prejuízo directamente resultante da situação de omissão”, a cuja invocação o nº 1 do art. 77º do CPTA reporta a legitimidade para o pedido de declaração de ilegalidade por omissão de normas de regulamentação de actos legislativos.
Tarefa interpretativa que será levada a cabo com referência aos parâmetros e princípios normativos basilares do CPTA, em matéria de legitimidade processual, naturalmente à luz das garantias contenciosas acolhidas no texto constitucional.
O acórdão sob revista, como vimos, confirmou a sentença do TAF que julgara procedente a excepção de ilegitimidade dos Autores, considerando prejudicado o conhecimento das demais excepções, e que, em consequência, absolvera os Réus da instância.
Limita-se, praticamente, a transcrever a decisão de 1ª instância, no que concerne ao fundamento nuclear dessa decisão: a inexistência, in casu, de um prejuízo directamente resultante, para os Autores, da situação de omissão.
Depois de citar o conteúdo do art. 77º, nº 1 do CPTA, e dos arts. 195º e 213º do Estatuto dos Militares da GNR, aprovado pelo DL nº 265/93, de 31 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 15/2002, de 29 de Janeiro, ali se refere, no essencial, que “O novo meio processual criado pelo CPTA, que os ora AA pretendem utilizar para satisfazer as suas pretensões, contém uma norma especial de legitimidade, de carácter mais exigente do que as regras gerais estabelecidas no CPTA, sobre esta matéria” e que “o legislador não se basta com a aferição da existência de um "interesse" do autor, mas exige a alegação de "prejuízos", ou seja, este meio processual destina-se não apenas a satisfazer uma pretensão, mas a obviar a uma situação de lesão dos direitos dos particulares”, sendo certo que “os prejuízos directos a que a lei se refere não devem ser eventuais, mas actuais, no sentido de que da omissão de regulamentação decorra uma situação de dano imediato na esfera jurídica dos AA., o que não sucede no caso sub judice”, uma vez que “a frequência do tirocínio depende de admissão para o efeito, e o ingresso na carreira de oficial depende do processo de recrutamento e da existência de lugar em quadro que ainda falta aprovar”.
Conclui, assim, que “da ausência de regulamentação prevista no nº 6 do artigo 195º do EM/GNR não resulta directamente, para a esfera jurídica dos particulares, um prejuízo, pois a frequência do tirocínio depende de admissão para o efeito, e o ingresso na carreira de oficial depende do processo de recrutamento e da existência de lugar em quadro que ainda falta aprovar”, existindo pois “mais pressupostos aleatórios de que dependerá o objectivo dos AA”.
Discordando de tal decisão, alegam os recorrentes, em suma, que a interpretação acolhida no acórdão recorrido sobre o que deve entender-se por "prejuízo directamente resultante da situação de omissão" baseia-se em doutrina e jurisprudência antigas, contemporâneas do advento do Código Administrativo (1940) e do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (1957), não atendendo aos objectivos do legislador do CPTA ao consagrar as acções administrativas especiais de declaração de ilegalidade por omissão de regulamentação de normas legais.
E que essa interpretação torna praticamente impossível o recurso pelos cidadãos a este tipo de garantia, pois a inexistência de uma norma regulamentar não é susceptível de, por si só, causar um prejuízo, pelo que se mostra infringida a tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos consagrada nos nºs 4 e 5 do artigo 268º da Constituição.
Vejamos.
A pretensão judiciária formulada pelos Autores, ora recorrentes, no âmbito da acção administrativa especial por eles intentada, é a de declaração de “ilegalidade por omissão de normas cuja adopção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação” (art. 77º, nº 1 do CPTA), concretamente, a omissão da regulamentação prevista no nº 6 do art. 195º do Estatuto dos Militares da GNR, aprovado pelo DL nº 265/93, de 31 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 15/2002, de 29 de Janeiro.
E o pedido que formularam foi o de que as entidades demandadas fossem condenadas a aprovar a regulamentação ilegalmente omitida.
O princípio geral de legitimidade activa estabelecido no art. 9º do CPTA (“o autor é parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”) evidencia o propósito claro do legislador de erigir todo o sistema judiciário – também o administrativo – em torno da figura da relação jurídica, no caso a relação jurídica administrativa.
A legitimidade activa surge no CPTA determinada pela regulamentação específica definida para cada um dos meios processuais previstos no Código, funcionando aquele princípio geral legitimador como um denominador comum a todos eles.
Por outro lado, a legitimidade processual no CPTA assenta num figurino de concretização do princípio da tutela jurisdicional efectiva: enquanto a legitimidade passiva se resguarda, na perspectiva de reduzir ao mínimo as objecções formais que possam colocar-se à apreciação de mérito da causa ou que de algum modo possam dificultar o acesso efectivo à justiça administrativa, a legitimidade activa expande-se, garantindo de forma mais abrangente a protecção jurídica dos particulares lesados por actuações ou omissões da Administração (cfr. Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Legitimidade Processual, CJA nº 34, pág. 23).
Na situação dos autos, somos confrontados com a disciplina contida no art. 77º, nº 1 do CPTA, que confere legitimidade para o pedido de declaração de ilegalidade por omissão de regulamentação de actos legislativos, para além do Ministério Público e pessoas ou entidades defensoras de interesses difusos, a quem “alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão”.
O que está aqui verdadeiramente em causa é a omissão ilegal, por parte da Administração, do dever de regulamentar actos legislativos carentes de regulamentação, deste modo infringindo a própria determinação legal impositiva dessa regulamentação. Ou – na expressão de Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed., pág. 227, o “(in)exercício de um poder administrativo vinculado quanto ao an, uma vez que se trata do (in)cumprimento, por parte da Administração, do dever de dar exequibilidade, por via regulamentar, a determinações contidas em actos legislativos...”.
Como sublinha o Prof. José Carlos Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., pág. 253, a figura e a fórmula adoptada pelo legislador foram evidentemente inspiradas na fiscalização da inconstitucionalidade por omissão das medidas legislativas necessárias à exequibilidade de normas constitucionais (art. 283º da CRP), devendo aqui, em sede de omissão de regulamentação de actos legislativos, “tratar-se da omissão de regulamentos que se prove serem necessários à execução de preceitos concretos das leis em vigor, nos termos referidos no nº 1 do artigo 119º do Código do Procedimento Administrativo”.
O conceito de legitimidade utilizado pelo CPTA no art. 77º, nº 1 (reportado a quem “alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão”) é relativamente vasto, como é típico das acções relativas a normas, mas que neste tipo legal se afigura um pouco mais exigente: o prejuízo tem que ser directo e actual.
Resta saber se essa exigência vai ao ponto de confortar o entendimento sufragado no acórdão recorrido de afastar, in casu, a legitimidade dos ora recorrentes para o pedido de declaração de ilegalidade por omissão de regulamentação, com o fundamento de que não há um prejuízo directamente resultante, para os Autores, da situação de omissão, uma vez que existiriam outros pressupostos aleatórios de que depende a pretensão formulada, como sejam a admissão e frequência do tirocínio e a existência de lugar em quadro que falta aprovar.
Dir-se-á, desde já, que não se sufraga tal entendimento.
A referência a quem “alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão”, constante do nº 1 do art. 77º do CPTA, deve entender-se como reportada à invocação de um interesse individual, que pode consistir numa posição jurídica substantiva ou num mero interesse de facto, devendo, em qualquer caso, “tratar-se de um direito subjectivo ou de interesse de facto que derive directamente da norma, ou que seja por ela reconhecido, e que careça de regulamentação para se tornar exequível” (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed., pág.453.
A esta luz, o prejuízo a que alude o preceito em causa reconduz-se à ofensa desse direito subjectivo ou interesse de facto, conferido ou reconhecido pela norma legal, ofensa essa consubstanciada na omissão ilegal da regulamentação que era necessária à sua exequibilidade.
Vejamos então a norma legal cuja regulamentação os Autores dizem ilegalmente omitida pela Administração, para se apurar se há ou não, para eles, um prejuízo directamente resultante da situação de omissão, à luz do disposto no art. 77º do CPTA.
A norma legal por eles invocada é o nº 6 do art. 195º do Estatuto dos Militares da GNR, aprovado pelo DL nº 265/93, de 31 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 15/2002, de 29 de Janeiro, que dispõe:
"1 - O ingresso na categoria de oficial dos quadros da Guarda faz-se no posto de alferes, por habilitação com curso adequado ou, no caso dos licenciados admitidos por concurso nos termos de legislação especial prevista neste Estatuto, após a frequência de tirocínio de formação, com aproveitamento.
2 - Os alferes habilitados com curso são ordenados por quadros e cursos e, dentro de cada curso, pelas classificações nele obtidas.
3 - A antiguidade dos alferes a que respeita o número anterior é referida a 1 de Outubro do ano em que concluíram, com aproveitamento, o curso de formação, ou antecipada de tantos anos quantos os que a organização escolar do respectivo curso exceder cinco anos.
4 - A antiguidade dos alferes admitidos por concurso nos termos de legislação especial a que se refere o n.º 1 é referida a 1 de Outubro do ano em que concluíram o tirocínio, antecipada ou retardada de tantos anos quantos os que a organização escolar da respectiva licenciatura, somada à correspondente preparação militar e ao tempo de duração do estágio ou internato geral e complementar, no caso dos licenciados em Direito e Medicina, exceder ou for inferior a cinco anos.
5 - A ordenação na lista de antiguidade dos alferes mencionados no número anterior com a mesma antiguidade faz-se, em cada quadro, segundo a classificação final, resultante da média ponderada das classificações obtidas na licenciatura e no tirocínio, e, em igualdade de classificação final, de harmonia com o disposto no artigo 28º.
6 - As normas de ingresso nos quadros de técnico superior de apoio (SAP), de transmissões, informática e electrónica (TIE), de medicina (MED), de medicina veterinária (VET), de enfermagem e diagnóstico e terapêutica (TEDT) e de juristas (JUR) são definidas por portaria do Ministro da Administração Interna.
7 - Os militares que ingressarem na categoria de oficial dos quadros da Guarda prestam «juramento de fidelidade», em cerimónia pública."
(sublinhado nosso)
Por sua vez, o art. 213º do mesmo Estatuto, dispõe que:
"O recrutamento para oficiais dos quadros é feito entre alunos que frequentarem os cursos de formação de oficiais e, nos termos de legislação especial, os licenciados que pertençam aos quadros da Guarda ou tenham cumprido o serviço efectivo normal como oficiais das Forças Armadas, mediante a frequência do respectivo tirocínio de formação com aproveitamento."
O argumento em que assenta o acórdão sob revista é o de que a omissão de regulamentação não causou prejuízo directo aos Autores, uma vez que, para além da regulamentação omitida, existiriam outros pressupostos aleatórios de que depende a pretensão por eles formulada, concretamente a frequência do tirocínio e a existência de lugar em quadro que faltaria aprovar.
Ora, esta argumentação é, em nosso entender, falaciosa.
É que, em rigor, esses pressupostos aleatórios de que fala o acórdão recorrido são, afinal, a própria regulamentação reclamada pela norma legal em causa, o nº 6 do art. 195º do Estatuto.
Na verdade, o que a norma nos diz (bem como a do art. 213º, que dispõe sobre os moldes de recrutamento) é que o ingresso na categoria de oficial dos quadros da Guarda se faz, no caso dos licenciados admitidos por concurso nos termos de legislação especial prevista neste Estatuto, após a “frequência de tirocínio de formação, com aproveitamento” (nº 1), e que as normas de ingresso nesses quadros “são definidas por portaria do Ministro da Administração Interna”.
Esta Portaria nunca veio a ser publicada, apesar de a norma a regulamentar ser de Janeiro de 2002 (DL nº 15/2002).
Ora, prevendo a norma do nº 6 do art. 195º do Estatuto que as normas de ingresso nos quadros de oficiais “são definidas por portaria do Ministro da Administração Interna”, é óbvio que a Portaria de regulamentação tem obrigatoriamente que tratar das “normas de ingresso nesses quadros”, ou seja, da implementação do tirocínio de formação a frequentar pelos referidos licenciados.
Não faz, pois, qualquer sentido apontar a frequência do tirocínio de formação como um pressuposto aleatório que acresce à regulamentação omitida. Ela corporiza a própria regulamentação reclamada na norma legal e que nunca foi implementada.
Quanto à necessidade de lugar em quadro que faltaria aprovar, também isso faz parte da própria regulamentação a que alude a norma legal, sendo certo, de qualquer modo, que esse é um pressuposto-regra de ingresso em qualquer categoria, seja de oficial ou não, e que se impõe tanto aos licenciados como aos não licenciados habilitados com curso adequado (nº 1 do art. 195º do Estatuto).
Não restam pois quaisquer dúvidas de que, ao não publicar a portaria de regulamentação prevista no nº 6 do art. 195º do EMGNR, a Administração está, sem mais, e com essa omissão ilegal, a impedir os Autores, detentores de formação superior como Licenciados, de usufruírem do seu direito subjectivo, reconhecido na citada norma legal estatutária, de ingresso na categoria de oficial dos quadros da GNR, após a frequência de tirocínio de formação com aproveitamento, e no âmbito do preenchimento regular das vagas nos respectivos quadros, desfrutando consequentemente de todas as regalias inerentes a esse ingresso.
A isso se reconduz, in casu, o prejuízo directamente resultante da situação de omissão, a que alude o art. 77º, nº 1 do CPTA.
O acórdão sob revista fez, pois, incorrecta interpretação e aplicação da lei, designadamente do art. 77º, nº 1 do CPTA, ao confirmar a sentença de 1ª instância que julgou procedente a excepção da ilegitimidade dos Autores e absolveu os Réus da instância, decisão que não pode, pelas expostas razões, ser mantida, assim procedendo a alegação dos recorrentes.
(Decisão)
Com os fundamentos expostos, acordam em:
a) conceder a revista, revogando o acórdão recorrido, e julgar improcedente a excepção da ilegitimidade dos Autores;
b) ordenar a baixa do processo ao TAF de Almada para que conheça das demais excepções invocadas, cujo conhecimento considerou prejudicado, e, nada obstando, do mérito da acção.
Custas pelas entidades recorridas.
Lisboa, 11 de Março de 2010. – Luís Pais Borges (relator) – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho – Alberto Acácio de Sá Costa Reis.

1 comentário:

  1. Desde 1993 que a luta dos licenciados da GNR (Sargentos e Guardas) é uma realidade.
    Espero que, finalmente, se faça justiça.
    Na GNR , possuir um doutoramento ou o 9.º ano de escolaridade é a mesma coisa no que concerne à progressão na carreira...
    A omissão do dever de regulamentar devia ser considerado crime e não uma mera censura política.
    Um Estatuto militar que defrauda expectativas aos seus destinatários "arruina" as virtudes e qualidades militares que estão na sua base.
    A verdade é que a legislação institucional da Guarda esta pejada de normas por regulamentar , criadoras de estranhas expectativas...sempre adiadas...
    Feliz Natal!
    Até breve.

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