segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

QUESTÕES DE LEGITIMIDADE E OUTROS CASOS DA VIDA REAL

QUESTÕES DE LEGITIMIDADE E OUTROS CASOS DA VIDA REAL
DIREITOS DOS PARTICULARES VS ADMINISTRAÇÃO


PROBLEMAS EVENTUALMENTE SUSCITADOS PELO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO (porventura não necessariamente limitados ao ramo de Direito Administrativo):

Antes de mais, a chamada de atenção para duplicidade de normas de processo; de um lado, o Código de Procedimento e Processo Tributário para a Administração Fiscal, que segundo o Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva, é um “código esquizofrénico”, que regula simultaneamente o procedimento (administrativo) e o processo (judicial), criando desde o título uma confusão entre as duas actividades. Do outro lado (em relação ao processo), o Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Haveria porventura ganhos de eficiência, tanto do ponto de vista do aperfeiçoamento legislativo, como da aplicação do processo pelos Tribunais, sem falar na posição dos particulares, se houvesse um único Código de Processo Administrativo.

UM CASO DA VIDA REAL

“Usurpação de poder” judicial por parte da Administração (considerando que, apesar da sua especificidade, a Administração Fiscal se insere necessariamente na Administração):
A proposta de Orçamento de Estado prevê uma alteração ao art.º 245º do CPPT, que resultará na subtracção de competência do Tribunal Administrativo e Fiscal para a verificação e graduação de créditos no âmbito de uma venda executiva promovida pela Administração Fiscal, e consequente atribuição dessa competência à Administração Fiscal, como se pode verificar:

Redacção anterior:
Artigo 245.º
Verificação e graduação de créditos
1 - A verificação e graduação dos créditos tem efeito suspensivo quanto ao seu objecto, sem prejuízo do andamento da execução fiscal até à venda dos bens.
2 - Havendo reclamações ou juntas as certidões referidas no artigo 241.º, o processo será remetido ao tribunal tributário de 1.ª instância para ulteriores termos de verificação e graduação de créditos acompanhado de cópia autenticada do processo principal.
(Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho)

Redacção proposta (altera o n.º 2 e adita os n.ºs 3 e 4):
Art.º 245º
2 - Havendo reclamações ou juntas as certidões referidas no art.º 241º, o órgão de execução fiscal procede à verificação e graduação de créditos, notificando dela todos os credores que reclamaram créditos.
3 – Os credores referidos no número anterior podem reclamar da verificação e graduação de créditos nos termos e prazos previstos nos artigos 276º e seguintes.
4 – A reclamação referida no número anterior tem efeitos suspensivos, procedendo-se à sua remessa imediata ao Tribunal Tributário de 1ª Instância acompanhado de cópia autenticada do processo principal.

Nestes termos, o Tribunal terá um controle a posteriori, mediante prévia reclamação do acto, no prazo (regra) de 10 dias, nos termos do art.º 277 CPPT.
Parece haver resquícios de um modelo antigo, em que julgar era ainda administrar – e isto porque, neste caso, a Administração, que devia ser somente parte no processo, de acordo com o novo espírito instituído pela constituição de 1976, concorrendo com os demais credores ao produto da venda, passará a ser simultaneamente parte e decisora em primeira instância; Isto, num processo que envolverá não somente o sujeito passivo da relação jurídica tributária (cujos bens foram vendidos), mas também todos os demais credores do mesmo, que serão tratados de forme diferente do credor “Administração Tributária” (desde o prazo de reclamação dos créditos, até o curto prazo de reclamação da graduação de créditos, sem contar com vícios procedimentais eventualmente existentes - a falta de notificação válida e eficaz, por exemplo).

…DE COMO CONJUGAR O PRINCÍPIO DA TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA (ART.º 2º DO CPTA, COM A LENTIDÃO DOS PROCESSOS...:

Chegados a este momento, provavelmente estarão todos a pensar que isto será sempre lesivo dos direitos dos particulares. Embora me pareça efectivamente uma intromissão num poder que deveria ser judicial – e portanto, inadmissível - apresento um caso curioso:
Um executado, cujo prédio foi vendido pela Administração Fiscal, para pagamento de dívidas, querendo ver o produto da venda aplicado na dívida, assim se “livrando” da mesma, insiste junto da Administração Fiscal para que faça essa aplicação, a fim de extinguir a dívida. Obviamente que a Administração, em cumprimento da legalidade, responde que terá que aguardar a graduação de créditos feita pelo Tribunal, para desespero do contribuinte, que precisa de ter a sua situação regularizada perante a Administração Fiscal.
A realidade nunca é simples – neste caso, estão em causa os interesses da Administração (que deverá tradicionalmente prosseguir o interesse público e a defesa da legalidade), do administrado (executado), e dos demais reclamantes de créditos que, a meu ver não deveriam ser tratados como administrados nesta questão, mas como partes de um processo judicial.
A questão terá de ser vista do ponto de vista dos vários direitos que corresponderão aos vários sujeitos, uma posição conforme com a viragem do Contencioso Administrativo para a vertente subjectiva. E os sujeitos (particulares e Administração) deverão ser tratados no processo como partes, de acordo com o plasmado no art.º 6º CPTA (que é aliás uma decorrência do princípio constitucional geral da igualdade).
O art.º 268º, n.ºs 4 e 5 (na sua redacção actual), da Constituição, adiantando-se à reforma do contencioso administrativo, parte de um prisma subjectivista, tentando garantir a efectiva tutela dos direitos dos particulares face à Administração. Evoluiu-se de um contencioso de mera legalidade, centrado no acto administrativo (definitivo e executório) e no recurso de anulação, para um contencioso que parte da tutela subjectiva do particular. Não há no entanto, que esquecer, que o controlo da legalidade efectivar-se-á reflexamente através da tutela dos direitos individuais, pelo que se poderá assim ultrapassar um modelo rígido de separação objectivista/subjectivista.
O n.º 1 do art.º 9º do CPTA consagra a vertente subjectivista da legitimidade (que terá, como foi dito, óbvio reflexo na defesa indirecta da legalidade). O n.º 2 do mesmo artigo confere legitimidade activa para defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos - vertente objectiva que pugna pela defesa da legalidade e do interesse público - à acção pública e acção popular. A vertente objectiva subsiste assim após a reforma, em várias previsões. De facto, a acção pública viu mesmo alargado o seu âmbito de intervenção na reforma do contencioso administrativo – nas acções relativas a contratos, nos termos da al. b) do n.º 1 e alíneas c) e d) do n.º 2 do art.º 40 CPTA, bem como a previsão da alínea c) do n.º 1 do art.º 68º do CPTA, em relação à condenação da Administração à prática de acto devido. A acção pública desempenhada pelo Ministério Público não tem restrições, como se pode concluir pela leitura da alínea b) do n.º 1 do art.º 55 e do n.º 3 do art.º 73ª do CPTA.
No entanto, apesar de previstas, a acção pública e a acção popular pouca expressão têm tido na prática judicial, pelo que se encontram sub-aproveitados tais meios de defesa de legalidade e do interesse público.
A limitação prevista no n.º 2 do art.º 73º CPTA parece constituir uma desigualdade de tratamento algo incompreensível na lógica do novo contencioso administrativo: como declarar a ilegalidade de uma norma só para o caso concreto? Não se dirá aqui que, se ilegal, a sua declaração como tal deveria valer para todos os casos? Porquê limitar os efeitos à esfera jurídica de um particular, numa perspectiva restritivamente subjectivista, em vez de se ter simultaneamente em consideração a defesa da legalidade?... A questão é fulcral: a sentença que recai sobre um determinado pedido, ao mesmo tempo que tutela direitos subjectivos (considerados aqui de forma ampla), age em defesa da legalidade, e do interesse público na boa administração da justiça, uma vez que o juiz julga de acordo com o Direito (logo, de acordo com a legalidade). Resumindo: num caso concreto, tutela-se o direito do particular, e reflexamente a legalidade a dois níveis: no nível da aplicação do Direito ao caso concreto, e num segundo nível, na melhor aplicação e criação do Direito, que se pretende ir-se construindo com o debate doutrinário e jurisprudencial, dado que o teste do caso concreto é fundamental para a evolução normativa. Daí a crítica ao n.º 2 do art.º 73 do CPTA: falta a defesa da legalidade - e pior, do Direito - a um nível a que um contencioso integrado e não espartilhado deveria atingir.
Não se vê razão para não dizer que tutelar um direito (seja de quem for) é tutelar o Direito, dado que tutelar o Direito só por si terá talvez menos interesse, se pensarmos que porventura ninguém se irá servir dos direitos que lhe foram assim atribuídos de forma abstracta…
No entanto, o inverso não é necessariamente verdadeiro. Se pensarmos numa óptima de legalidade como cumprimento escrupuloso da lei pela Administração, “(…) não basta o escrupuloso cumprimento da lei por parte da Administração pública para que simultaneamente se verifique o respeito integral dos direitos subjectivos e dos interesses legalmente protegidos dos particulares.”3 Consideremos, por exemplo, o caso das providências cautelares, que sucumbem em benefício do interesse público (n.ºs 2 e 5 do art.º 120º do CPTA).

Em relação à acção popular, que, segundo o Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva se resume à acção popular genérica (n.º 2 do art.º 9º do CPTA e al. F) do n.º 1 do art.º 55 CPTA), que “engoliu” a acção popular autárquica (n.º 2 art.º 55 CPTA), a legitimidade existe, independentemente de haver interesse directo na demanda; aliás, a existir interesse directo, a acção seria nos termos do n.º 1 do art.º 9º do CPTA, e não do n.º 2 do mesmo artigo (questão discutível, sendo que Luis Filipe Colaço Antunes1 liga a acção popular à tutela de interesses difusos, conferindo-lhe uma componente subjectiva).
Segundo Freitas do Amaral, a formulação da alínea a) do n.º 1 do art.º 55º do CPTA leva a concluir que a legitimidade para impugnar actos administrativos não tem que se basear na ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido.2

A legitimidade, nos termos do n.º 1 do art.º 9, é aferida pelo critério da relação material controvertida, consentâneo com um processo de partes. Põe-se a questão de saber a utilidade da tripartição tradicional entre direitos subjectivo, interesses legítimos e interesses difusos, ou, a sua substituição por uma teoria unificada de direitos subjectivos públicos, na esteira do Professor Vasco Pereira da Silva. Tratando-se de aferir a legitimidade no contencioso administrativo, não interessa à partida saber, salvo melhor opinião, o resultado da actuação do direito i.e., o seu conteúdo, não se vendo razão para distinguir as três situações.
Assim, usando o exemplo clássico do Professor Freitas do Amaral, na sua primeira formulação, distinguiríamos por um lado o direito subjectivo, que constitui uma protecção directa e imediata, podendo o particular exigir a satisfação plena do seu interesse privado, e por outro lado, o interesse legítimo, que constituiria uma decorrência da protecção do interesse público, tendo o particular um direito à legalidade das decisões que versem sobre um interesse próprio, mas não um direito à plena realização em juízo do seu interesse. Exemplo do primeiro caso indicado pelo Prof. Freitas do Amaral seria a exigência, por parte de um funcionário, do pagamento da diuturnidade a que a lei lhe atribui direito. Como exemplo do interesse legítimo, o mesmo autor refere o caso do candidato a professor, preterido num concurso em que colocam ilegalmente alguém, sendo que o preterido tem apenas direito à anulação da colocação do candidato ilegalmente escolhido, mas não ao cargo para o qual havia concorrido.
Em contraponto, teríamos a posição do Professor Vasco Pereira da Silva, construindo um conceito amplo de direito subjectivo. De facto, mesmo o extremo da tripartição – os interesses difusos – correspondem a necessidades colectivas individualmente sentidas. Assim, uma norma que protege o ambiente protege todos igualmente, dado que protege um bem público – ou um bem colectivo de que ninguém se pode apropriar, na perspectiva de Carla Amado Gomes - mas o que há a considerar é que esse bem é susceptível de aproveitamento individual, perspectiva que votaria a favor de uma perspectiva ampla do direito subjectivo neste contexto.
Retomando o exemplo do concurso, não é o direito a ser colocado no lugar ao qual se concorreu que está em questão (esse será o conteúdo desse direito), mas por exemplo, o direito subjectivo a um concurso justo, recorrendo neste caso à tutela jurisdicional efectiva para actuar esse direito.
Assim, tem uma posição subjectiva de vantagem, segundo a teoria da norma de protecção, qualquer pessoa protegida por uma norma jurídica, que tem um direito subjectivo (cujo conteúdo é variável consoante as circunstâncias).
Na ordem jurídica italiana, faz sentido distinguir direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos, mas como bem nota o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, “(…) para além do campo conceptual, tal utilidade não pode ser muita (…)”4, tendo o regime deles aspectos comuns, como por exemplo o acesso è generalidade dos meios processuais do contencioso administrativo, designadamente às acções para impugnação de actos administrativos e as providências cautelares.
De que vale dizer de antemão que x tem um direito subjectivo, que será atendido precisamente nos termos em que ele o solicita ao Tribunal, ou dizer que x tem direito a ir a Tribunal para defesa do direito que pensa ter, nos precisos termos em que formula o pedido ao Tribunal? No primeiro caso, poder-se-ia verificar porventura ter havido lapso na qualificação do direito como subjectivo (ex: o Tribunal não lhe deu razão – logo, porventura ele não tinha o direito subjectivo). No segundo caso, modificando ligeiramente o exemplo do concurso dado pelo Professor Freitas do Amaral: em vez de três concorrentes, eram dois, o impugnante e o provido ilegalmente, e o Tribunal declara a nulidade, não do concurso, mas da contratação do outro concorrente escolhido, disso resultando a atribuição da posição de vantagem pretendida, e porventura a actuação de um direito subjectivo, que é a de se fazer a tão costumada justiça no seu caso concreto!

1 Cfr. Silva, “Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise”, 2ª ed. Almedina, Lisboa 2009, pág. 370.
2 Cfr. Amaral, Diogo Freitas do e Almeida, Mário Aroso de “ Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª ed., Almedina, Lisboa, 2007, pág. 20.
3 In Amaral, Diogo Freitas do, “Curso de Direito Administrativo” – vol.2, pág. 62, 8ª ed., Almedina, 2008.
4 In Sousa, Marcelo Rebelo de, “Direito Administrativo Geral, Introdução e princípios fundamentais”, tomo I, 3ª ed., Dom Quixote, 2008, pág. 211.

Isilda Cunha – aluna 17623
Subturma 1

Sem comentários:

Enviar um comentário