terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Intervenção do Ministério Público

Data: 13/12/2010
Proc.s Nº: 123/10.1BELSB
124/10.1BELSB

Exmo. Senhor
Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa

É competente a jurisdição administrativa nos termos do art.º 4.º n.º 1 alínea e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Na acção administrativa especial, supra aludida, o Ministério Público (doravante, enunciado Mº.Pº), tendo recebido petição inicial com os documentos que a instruem, vem, ao abrigo do art.º 85º n.º2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pronunciar-se sobre o mérito da causa.

Nos termos do art.º 219º da Constituição da República Portuguesa e do art.º 1º do Estatuto do Ministério Público, compete ao M.º.Pº, a título institucional, a defesa da legalidade e do interesse público. Tarefa que, desde a reforma do Contencioso Administrativo de 2004, pode desempenhar tanto ao nível de emissão de pareceres (art.º 85º/1 CPTA) como enquanto autor (85º/1/in fine CPTA). Os seus poderes em nada foram restringidos com esta nova redacção, cabendo ao M.º.P.º pronunciar-se sobre todas as questões relevantes. Fazendo-o, inclusivamente, mesmo quando não seja parte (como presentemente), em uso do seu estatuto próprio de amicus curiae, arguindo, em prol da defesa da legalidade, invalidades não mencionadas pelas partes. Considerando que quase todas as questões processuais são hoje de conhecimento oficioso, devem estas ser aferidas pelo Tribunal.

Atendendo aos poderes que lhe competem enquanto sujeito processual, por via da acção pública e pelo disposto no art.º 9º n.º 2 (ex vi art.º 85º nº2) do CPTA, o M.º.P.º tem legitimidade para intervir no âmbito da presente acção administrativa, o que faz nos seguintes termos:

Considerando que a causa de pedir é comum, é possível a apensação dos processos nos termos do art.º 61.º do CPTA, analisaremos as petições iniciais apresentadas por ambos os AA.

Francisco Esperto, assim identificado nos autos, é parte legítima nos termos do n.º 2 do art. 9.º do CPTA e da alínea b) do n.º 1 do art.º 40 do mesmo CPTA. De facto, este é um direito constitucionalmente consagrado de acordo com a alínea b) do n.º 3 do art.º 52, sendo que o n.º 2 do art.º 1 da Lei n.º 83/95 é meramente exemplificativo. Aliás, o disposto no n.º 2 do art.º 9 abrange não apenas os bens de natureza dominial, mas também os de natureza patrimonial (domínio privado) dos entes públicos enunciados, seja o ouro do Banco de Portugal, a sede de um município ou uma parcela de terreno da sua propriedade. «(…) A afectação constitucional (ainda que imanente) de todos os bens públicos, sem excepção, à satisfação financeira ou funcional das necessidades colectivas, por nós, é fundamento suficiente para considerar os bens patrimoniais públicos abrangidos na previsão deste n.º 2. (…)», in Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado, pág. 164.

De facto, a legitimidade alarga-se «(…) a outras entidades, designadamente, particulares que, embora não devendo ser considerados estranhos perante a relação jurídica contratual, ainda assim, devem considerar-se terceiros perante o contrato. Enfim, o acolhimento da ideia de que o contrato administrativo não é um acordo que só às partes diz respeito, não sendo, pois, um “mundo fechado que só às partes interessa”, traduz, na verdade, uma das novidades mais significativas das alterações introduzidas no contencioso contratual. (…)», (Isabel Celeste M. Fonseca, in Direito da Contratação Pública – Uma Introdução em Dez Aulas, Almedina 2009, pág. 248).

No entanto, verifica-se existir erro na forma de processo escolhida pelo A. A acção administrativa comum surge vocacionada, ao contrário da acção administrativa especial, que tem por objecto fiscalizar o exercício dos poderes administrativos, para dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas igualitárias, que não envolvam o exercício de poderes de autoridade por parte da Administração. São exceptuados da acção comum, a resolução de litígios emergentes da prática ilegal de actos administrativos. Neste caso, o A. não contesta qualquer acto administrativo, limitando-se a requerer a anulação do contrato. Assim, é do nosso entendimento que a forma de processo adequada seria a forma de acção administrativa comum, prevista no art. 37 do CPTA.

Apesar de o pedido do A. não estar correctamente formulado, a petição inicial deverá ser interpretada segundo os princípios comuns à interpretação das declarações negociais, nos termos do art.º 236 do Código Civil, isto é, de acordo com a teoria objectivista da impressão do destinatário – o declaratário normal colocado na posição do real declaratário. Assim, embora seja clara a falta de rigor técnico na formulação do pedido, justifica-se que o mesmo seja compreendido no sentido de condenar a Administração à resolução do contrato, devendo o juiz procurar corrigir oficiosamente esta irregularidade nos termos do n.º 1 do art.º 88 do CPTA. No entanto, mesmo que assim não se entenda, da leitura da contestação depreende-se que o réu interpretou convenientemente a petição inicial, pelo que esta nulidade é sanável nos termos do n.º 3 do art.º 193 do Código de Processo Civil (ex vi art.º 1.º CPTA). Assim, deverá o Meritíssimo Juiz convidar o autor ao aperfeiçoamento da PI, de acordo com o previsto no n.º 2 do art.º 88 do CPTA.

A condenação da Administração à resolução do contrato não poderá contudo proceder. O que o A. visa é a anulação do contrato face ao incumprimento pontual da contraparte, nos termos do art.º 325.º n.º 1 e 4 do Código dos Contratos Públicos, o qual remete para o regime de incumprimento definitivo do Código Civil. Assim, o que o A. vem arguir é a perda de interesse na manutenção de um contrato não pontualmente cumprido (face à mora cujo suprimento ocorreu após a extinção do facto jurídico principal). Alega o A. que o interesse público na manutenção deste contrato está posto em causa, visto que esta contratação foi motivada pela necessidade de compra destes veículos por motivos de segurança durante a IX Cimeira da NATO, que decorreu entre os dias 19 e 20 de Novembro de 2010, e, dado que o prazo de entrega não foi cumprido, há perda de interesse objectivo (art.º 808º CC). O A. apresenta ainda factos que manifestam a eventual lesão do interesse público, na medida em que não se apresenta como escolha financeiramente vantajosa, sendo inclusivamente lesiva do erário público, facto consubstanciador dessa perda de interesse (considerando que é “um poder e um dever do contraente público agir no sentido de prevenir a ofensa do interesse público decorrente do incumprimento do contrato”, in Código dos Contratos Públicos anotado e comentado, Jorge Andrade da Silva, comentário ao art.º 325º, ponto 3). Destarte, estaria a violar-se não só o art.º 4.º do Código de Procedimento Administrativo, como a própria Lei Fundamental (art.º 266.º CRP), por desrespeito pelo princípio da prossecução do interesse público (“visa optimizar a satisfação de necessidades colectivas que lhe [Administração Pública] incumba cumprir”, Direito Administrativo Geral, Tomo I, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Dom Quixote, Lisboa). Todavia, a invocada perda de interesse não legitima o particular a interferir numa área que cabe perfeitamente na margem da livre discricionariedade da Administração, pelo que não pode proceder o pedido de resolução do contrato, por falta de alegação de acto administrativo impugnável, não se podendo aproveitar os factos apresentados, nos termos do art.º 89.º n.º 1 alínea c).

Há ainda a dizer que, visto estar em causa o pedido de anulação de um contrato, deverá ser proposta a acção contra ambas as partes do contrato, dado que se verifica uma situação de litisconsórcio passivo necessário, nos termos do n.º 1 do art.º 10º do CPTA, podendo ser demandados particulares nos termos do n.º 7 do mesmo artigo.

Diferente é a apreciação a fazer relativamente aos pedidos formulados por “Somos de Inteira Confiança, Lda”, melhor identificada nos autos.

O A. é parte legítima nos termos do n.º 2 do art.º 9.º e art.º 55.º n.º 1 al. a), tal como o pedido é configurado pelo A.

A acção em questão é susceptível de tutela jurisdicional efectiva pelo art.º 2º nº1 CPTA, visto que aos direitos e interesses protegidos corresponde uma tutela jurisdicional que visa obter a anulação do contrato (art.º 2º n.º 2 alínea g)) e também a anulação do acto administrativo (art.º2º nº2 alínea d)). A A. invoca, cumulativamente, a condenação à prática do acto administrativo legalmente devido (art.º 2º nº 2 al. i)) – lançamento do concurso público internacional. Desta forma está-se no âmbito da acção administrativa especial (art.º 46.º n.º 1, n.º 2 alíneas a) e b) e n.º 3). É admissível esta cumulação nos termos do art.º 4º n.º 1 alínea a) e n.º 2 al. d) e c), tal como é o pedido subsidiário formulado (indemnização) ao abrigo da alínea f) do referido n.º 2. Resta agora analisar a validade destes pedidos e os factos invocados para fundamentar a presente acção.

Esta acção administrativa especial segue a tramitação de processo urgente, de acordo com o disposto no art.º 100.º, ex vi n.º 3 do art.º 46.º CPTA. Esta solução é, no entanto, discutível dado que o contrato já foi integralmente cumprido, havendo quem entenda que a lógica subjacente a esta acção visa tutelar interesses numa fase prévia à consumação do facto, impedindo-a.

A A. alega que fora lesada pela ilegalidade no acto de escolha de celebração de contrato público. Com efeito, foi celebrado contrato de fornecimento de dois blindados entre o Ministério da Administração Interna e a “General Dynamics”, pelo montante de 1.200.000 Euros, com vista a garantir a segurança interna durante a Cimeira da NATO. Este contrato resultou da adjudicação da compra à supra mencionada empresa através de ajuste directo, com fundamento no carácter de urgência da encomenda. A entrega dos veículos não foi feita no prazo estipulado e o MAI não procedeu à resolução do contrato, o que poderia fazer nos termos do art.º 325º CCP. A este regime está subjacente “a preocupação de assegurar, na medida do possível, a execução do contrato pontualmente (…) Para isso [resolução do contrato] é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: a) Que o incumprimento tenha por causa facto imputável ao co-contratante (…) b) (…) incumprimento ponha razoavelmente em causa a conclusão da obra no prazo contratado (…) c) Não cumprimento do prazo fixado pelo contraente público para cumprir a parte obrigacional em falta. (…)”.

Antes de apreciar os termos da arguição da A., importa referir que, nos termos do art.º 57.º CPTA, são obrigatoriamente demandados os contra-interessados, no caso a General Dynamics, indicação que, em sede de acção administrativa especial, deve ser feita na petição inicial. Não é feita tal designação na petição em apreço, violando-se o art.º 78.º n.º 2 al. f) CPTA, falta que obsta ao prosseguimento do processo (art.º 89.º n.º 1 al. f) CPTA), mas que deve ser corrigida oficiosamente nos termos do art.º 88.º n.º 1 CPTA.

A A. é fabricante de material de segurança, produzindo também veículos blindados, criando expectativa de concorrer em concurso público para o fornecimento destes bens à AP, crendo na imposição legal deste acto procedimental. Pressuposto erróneo dado que não é obrigatório abrir concurso público, este procedimento cabe ao juízo discricionário da AP (Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa).

Existe discricionariedade na selecção do procedimento para contratação pública, nos termos do art.º 18.º do CCP, mas esta escolha condiciona o valor do contrato. A ratio deste regime é a seguinte: quanto maior for a dimensão financeira do contrato, maiores as exigências impostas ao princípio da concorrência. Antes de mais importa compreender que o princípio da concorrência, consagrado no art.º 1.º n.º 4 do CCP, “visa garantir o mais amplo acesso aos procedimentos por parte dos interessados em contratar e que em cada procedimento sejam consultados o maior número de interessados” (Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, in Contratos Públicos – Direito Administrativo Geral Tomo III) e também a melhor prossecução do interesse público que preside à celebração do contrato, criando-se as melhores condições financeiras para a AP. Nos termos do art.º 20.º n.º 1 al. a) CCP, o acto é anulável por violação do valor permitido. Actualmente, ao contrário do regime anterior, a entidade adjudicante deve escolher o procedimento que considere adequado em função do valor do contrato, só que tem de ter em conta o valor máximo que, nos termos da lei, é permitido ao procedimento escolhido. Só perante a urgência incompatível com procedimento mais pesado se justifica o não atendimento do valor do processo, tendo em conta o princípio a ele subjacente. Os critérios materiais previstos nos artigos 19.º e ss. do CCP delimitam a opção da entidade pública. Estes critérios não são vinculativos, no sentido de permitir que, perante viabilidade de recurso a ajuste directo, se possa ainda assim recorrer ao concurso público, contudo são-no enquanto elementos essenciais de selecção. O ajuste directo para aquisição de bens móveis é assim permitido nos casos do art.º 24.º e do art.º 26.º do CCP. Independente do valor estimado do contrato a celebrar, é admitido o ajuste directo “na medida do estritamente necessário, quando por motivos de urgência imperiosa resultantes de acontecimentos imprevisíveis” (art.º 24.º, n.º 1 alínea c) do CCP). Urgência imperiosa implica, simultaneamente, uma situação imprevisível e a necessidade de satisfação do interesse público incompatível com prazos de procedimentos que deveriam normalmente ser adoptados (tais como fenómenos catastróficos naturais ou tecnológicos). Por imprevisibilidade leia-se imprevisibilidade objectiva, e ademais não imputável à entidade adjudicante. Os requisitos enumerados neste artigo são cumulativos.

Importa referir que, a haver um ataque terrorista, seria previsível que este ocorresse nos dias 19 e 20 de Novembro, data da realização da referida cimeira, pelo que parece estranho a alegação de que a urgência não decorre única e exclusivamente da realização da Cimeira da NATO, sobretudo tendo o R. sido alertado para a impossibilidade de entrega dos veículos, como é aludido no ponto 16.º da Contestação por parte do Ministério da Administração Interna à PI de Francisco Esperto. É notória a contradição entre a contestação à PI de Francisco Esperto e à PI de Somos de Inteira Confiança, Lda, ambas referentes aos mesmos factos.

Assim, parece que não se verificam na situação sub judice os requisitos delimitados quer no art.º 24.º, quer no art.º 26.º. De facto, não se encontra demonstrada a imprevisibilidade da necessidade urgente da encomenda dos carros blindados que determinou a adjudicação por ajuste directo.

Destarte, deverão ser efectuadas diligências instrutórias, nos termos do n.º 2 do art.º 85.º do CPTA, dado que o M.º P.º tem legitimidade para invocar causas de invalidade diversas das que tenham sido arguidos nos articulados, conforme dispõe o n.º 3 e n.º 4 do art.º 85.º, a fim de averiguar a verdade dos factos e garantir a defesa da legalidade.

O acto de ajuste directo poderá ser anulável nos termos do art.º 135.º do CPA, caso não se verifiquem os requisitos para escolha do procedimento de formação do contrato por ajuste directo supra mencionados. A escolha do ajuste directo é mais célere, todavia contraria uma das incumbências prioritárias do Estado, plasmada no art.º 82.º al. f) da CRP: assegurar o funcionamento eficiente dos mercados e garantir a equilibrada concorrência entre as empresas. Este procedimento só se justifica em casos restritos dado que contraria os princípios de igualdade de tratamento, não discriminação, transparência e concorrência efectiva.

Dado que da invalidade do acto procedimental depende a validade do contrato, o contrato entre o MAI e a General Dynamics deveria ser anulado, caso não se verificasse o preenchimento dos referidos requisitos.

No entanto, considerando que o contrato já havia sido adjudicado, celebrado e cumprido na totalidade, julga-se que deverá ser aplicado o n.º 4 do art.º 283.º CCP, afastando-se o efeito anulatório do acto devido aos interesses em questão. O Tribunal Central Administrativo Norte decidira já em sentido da improcedência do pedido de anulação do acto impugnado, bem como da adjudicação de concurso público em caso semelhante ao que ora se aprecia, no Ac. 01079/04.1BEBRG TCA Norte de 18/05/2006.
É esta, aliás, a ratio subjacente ao art.º 45º CPTA, onde se postula a improcedência da acção, nos casos em que o cumprimento dos deveres a que seria condenada a Administração origine um excepcional prejuízo para o interesse público.
Prossegue todavia o pedido de indemnização, nos termos do art.º 102.º n.º 5 CPTA, por remissão do art.º 45.º CPTA, uma vez provada a lesão sofrida pela A., a qual não se nos afigura por ora provada, considerando-se insuficientes os elementos referentes às despesas sofridas e a legítima expectativa da A., pelo que se requer a junção de novos elementos instrutórios que o confirmem.


Os Magistrados do M.º P.º,


Ana Margarida Ferreira

Cátia Oliveira

Dalila Baldé

Inês do Amaral

Isabel Candeias

Isilda Cunha

Luís Miguel Santos

Mara Dias

Maria Filomena Marques

Nuno Torres

Simão Pedro

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